Por Thiago Augusto Ferreira da Costa.
“Violência” significa o uso de agressividade intencional e excessiva para cometer ato que resulte em morte, acidente ou trauma, segundo a Organização Mundial da Saúde (Krug et. al., 2002). No entanto, a violência não deixa de ser um tema controverso, por ser carregada de polissemia a depender de contextos e lugares, a partir dos quais é mobilizada para nomear um problema. Nesse sentido, este artigo tem como questão verificar a letalidade que ocorre em cenário de segregação racial urbana e vulnerabilidade social, objetificando-a enquanto ação violenta de um conjunto de pessoas sobre a cidade.
Para se medir a violência urbana, em sentido geral, alguns indicadores “têm bases mais sólidas, como os números de homicídios” (Oliveira, 2003: p. 243). Dessa forma, enquanto nos Estados Unidos a taxa anual de homicídios era de 9,28 por 100 mil habitantes (2000), na Europa Ocidental era de 2,70 (2000), e na Europa Oriental, 15,73 (2000). Os homicídios menos ainda eram um problema na China, com taxa de 0,20 (Cezar; Cavallieri, 2002). Em todos esses países, a taxa não se alterou significativamente até o final dos anos 2010.
Na América Central, no entanto, esse índice chegou a 25,90 (2019), e na América do Sul, a 24,20, segundo a ONU (Lyssardi, 2019). Já no Brasil, a taxa foi de 27,8 (2018), segundo o Atlas da Violência (IPEA, 2021). Isso é útil para explicitar o caráter singular de violência e insegurança contemporânea na América Latina, na qual está incluída o Brasil. De acordo com Glebbeek e Koonings (2015), essa condição é aplicada frequentemente por agentes armados, como estratégia de controle do espaço urbano, condenando “indesejados” e protegendo “privilegiados”.
No primeiro caso, as pessoas condenadas têm a chamada “vulnerabilidade civil” (Kowarick, 2009), que se refere à ameaça à sua integridade física e à sua desproteção contra a violência praticada por delinquentes e pela polícia. Como tática de sobrevivência, criam-se “laços de solidariedade”, na maioria das cidades brasileiras, para que se tenha algum “equilíbrio instável” de sobrevivência no cenário do “viver em risco” (Op. cit., 2009).
Falando de causas brasileiras para a violência urbana, Oliveira (2003) apontou o processo de redemocratização nacional dos anos 1980 como uma insuficiência à pacificação, pois não foi acompanhado de medidas que pudessem reduzir o elevado índice de exclusão social, negação de serviços públicos aos vulneráveis e controle do tráfico de drogas. Dessa forma, por meio de discriminação racial, sexual, dentre outras, principalmente por parte do Poder Público, houve o aumento da violência urbana (Op. cit., 2003).
Dessa forma, em 2020, 78% de todas as violências letais no Brasil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2021), aconteceram por meio de arma de fogo. Isso em meio aos decretos assinados pelo governo Bolsonaro, desde 2019, que facilitaram ainda mais a aquisição e o porte de armas. Para Mariz (2018), ainda hoje apenas 23% das munições vendidas no Brasil são rastreadas por número de série, o que dificulta muito a solução das ocorrências. Além disso, apenas de 5% a 8% dos assassinatos são levados à Justiça, alimentando um “ciclo de violência” (NEV/USP, 2019) e uma maior sensação de insegurança, principalmente nas cidades. Entre todos os assassinados de 2019, mais de 91% foram vítimas homens e, desses, mais de 75% foram negros (IPEA; FBSP, 2021).
Na Bahia, está a polícia com o 4° lugar nacional em taxa de mortes em ações policiais por grupo de 100 mil habitantes, 7,60 em 2020, atrás apenas de Amapá, Goiás e Sergipe (FBSP, 2021). Além disso, o estado baiano tem tido diversos saltos anuais na violência letal, desde o começo dos anos 2000, causados por uma migração do "crime organizado" do Sudeste para o Nordeste, devido ao aumento da repressão das forças de segurança naquela região (Waiselfisz, 2012).
Na cidade de Salvador, com dados do Ministério da Saúde para 2018, a taxa de mortes violentas entre jovens (de 15 a 29 anos) chegou a ser até 11,50 VEZES maior para negros do que para brancos (DATASUS, 2018), mesmo sendo a proporção da população negra da cidade de 4 VEZES maior do que a branca (IBGE, 2010). Com relação apenas às mortes em ações policiais, a proporção é ainda maior, com jovens negros sendo mortos pela polícia até 15 VEZES mais do que os brancos (DATASUS, 2018), consolidando o fator racial como um dos principais componentes dessa desigualdade.
Em conclusão, as maiores relações entre a mancha de mortes violentas e os mapas com indicadores sociais, na pesquisa de Salvador, foram com a alta densidade populacional e a cor da pele negra. Todavia, uma população de menor renda e uma tipologia socioespacial popular não foram as variáveis que mais "atraíram" a mancha de mortes, mostrando haver maior complexidade nesse fenômeno e agentes da violência externos à condição social, como o tráfico de drogas e a própria ação mais repressiva da polícia em certos bairros.
REFERÊNCIAS:
CEZAR, Paulo B.; CAVALLIERI, Fernando. Como andam as taxas de homicídios no Rio e em outros lugares. Coleção Estudos Cariocas. Nº 20020602. Junho 2002. ISSN 1984-7203. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Urbanismo. Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos. Rio de Janeiro: IMUPP, 2002.
DATASUS. Sistema de Informação sobre Mortalidade - SIM. Ministério da Saúde. Disponível em: <http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sim/cnv/ext10ba.def>.
Acesso em: 17 mar. 2020.
FBSP, Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021. Vol. 15. São Paulo: FBSP, 2021.
GLEBBEEK, Marie-Louise; KOONINGS, Kees. Between “Morro” and “Asfalto”. Violence, insecurity and socio-spatial segregation in Latin American cities. Habitat International. Atlanta (GA/USA): Habitat for Humanity (ONG), 2015.
IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico, 2010.
IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; FBSP, Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Atlas da Violência, 2021.
KOWARICK, Lúcio. Viver em Risco: sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil. São Paulo: Ed. 34, 2009. 318p.
KRUG et al. World report on violence and health. Genebra: OMS, 2002. ISBN 9241545615.
LYSSARDI, Gerardo. "Por que a América Latina é a região mais violenta do mundo?". BBC News Mundo. 21 jul. 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-48988559>. Acesso em: 22 jul. 2022.
MARIZ, Renata. Apenas 23% das munições vendidas no Brasil podem ser rastreadas. O Globo. Rio de Janeiro, 27 ago. 2018. Brasil. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/apenas-23-das-municoes-vendidas-no-brasil-podem-ser-rastreadas-23013265>. Acesso em: 4 ago. 2020.
NEV/USP. Núcleo de Estudos da Violência da USP. In: Universidade do crime (Temporada 1, ep. 5). Guerras do Brasil.doc [documentário]. Dir. Luiz Bolognese. São Paulo: Netflix, 2019.
OLIVEIRA, Antônio S. A violência e a criminalidade como entraves à democratização da sociedade brasileira. Caderno CRH. nº 38. Jan./jun. 2003. Salvador: CRH/UFBA, 2003. Pp. 239-265.
WAISELFISZ, Júlio J. Mapa da violência 2012: a cor dos homicídios no Brasil. Rio de Janeiro: Cebela, Flacso, 2012. Disponível em: <https://flacso.org.br/files/2020/03/mapa2012_cor.pdf> Acesso em: 16 set. 2020.
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