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NUANCES DE UMA
SOCIABILIDADE VIOLENTA

SOCIABILIDADE VIOLENTA NO BRASIL

Aqui tomamos como guia Machado da Silva (2004, 2010), que formulou o conceito de “sociabilidade violenta” em seus estudos sobre violência urbana no Rio de Janeiro. Para esse autor, a violência urbana é objetificada como um complexo prático e discursivo, que combina medo e suas consequentes demandas por repressão, com a (errônea) percepção de “Estado ausente” (na verdade, presente com polícia e outros serviços, ainda que escassos), cujo resultado é a criminalização da “pobreza” e dos territórios populares.

Nesse contexto, a expansão da violência urbana parece estar intimamente ligada à economia internacional da droga, em particular da cocaína, que se acrescentou à tradicional cadeia de entorpecentes, sobretudo da maconha (MACHADO DA SILVA, 2010). Com isso, segregação socioespacial e racial (voltando ao conceito deste trabalho), em uma espécie de “ecologia” de desigualdade, vulnerabilidade e risco à violência letal, favorece a ponta do narcotráfico (o comércio para o consumo final), com ramificações em bairros populares. Essas áreas tendem a ser, mundo afora, segundo Machado da Silva (2010), intensamente afetadas pela violência policial e criminal, associada ao comércio de drogas não por simples causa e efeito, até porque se trata de “sociabilidade violenta” e não de “classes violentas”.

Para Machado da Silva (2010), as linhas de comando da cadeia produtiva de drogas, até mesmo fora do contexto nacional, não podem se restringir a  “bairros populares” (grifo nosso), que respondem apenas pela maior visibilidade dessa atividade, sobretudo por causa da imprensa. Essas ressalvas, entretanto, não devem obscurecer o reconhecimento de que, nas últimas décadas, esses territórios têm sido uma espécie de base de operações da violência urbana relacionada (ou supostamente relacionada) ao consumo, ou à própria comercialização final, de entorpecentes (MACHADO DA SILVA, 2010).

Portanto, para Machado da Silva (2010), o varejo de drogas é uma força centrípeta sobre a violência urbana incidente na população, residente ou flutuante, devido à massividade da violência do tráfico e de sua repressão sobre os (chamados neste trabalho) bairros populares. De fato, essa involuntária aproximação com o narcotráfico piorou, nesses bairros, um de seus problemas centrais, isto é, a sua integração já estigmatizada na organização socioterritorial e racial da cidade que, agora, está de volta à cena pública, atualizada com o estigma das drogas. Nesse contexto, tomou corpo em Salvador, assim como no Rio de Janeiro (demonstrado por Machado da Silva, 2010, no caso carioca), uma “sociabilidade violenta”, cujos “portadores” são os agentes da violência nos bairros populares.

Antes da “guerra às drogas” perpetrada pelo Estado brasileiro a partir do final dos anos 1980, a última ditadura militar tinha o controle das práticas dos “pobres” e desempregados urbanos – contravenções, crimes contra a pessoa e contra o patrimônio, prostituição, contrabando e comércio de drogas ilícitas (quase exclusivamente maconha) – era uma questão incipiente e despertava pouca atenção pública e cujo controle foi delegado à polícia (MACHADO DA SILVA, 2010).

Com a ditadura (1964-1985), a ideologia da Segurança Nacional politizou e trouxe ao debate público o controle social. A Polícia Militar, então, deslocou as suas atividades rotineiras de combate ao crime comum para a Segurança de Estado (Op. cit., 2010). Com isso, produziram-se condições para que houvesse a autonomia dos aparelhos policiais em relação ao legalismo e à perda das ligações mais próximas com a população, muito porque, a Lei de Segurança Nacional (1967), criada como reação aos assaltos a banco e sequestros protagonizados por grupos de luta armada anti-ditadura, desfez fronteiras judiciais entre crime comum e crime político (Idem, 2010).

Nesse sentido, com a “luta nacional contra as drogas” (grifo nosso), passaram a se destacar, nos bairros populares, o medo e a insegurança experimentados pela população mais afetada. Medo da criminalidade violenta, na medida em que os criminosos começavam a circular armados pelas ruas. Nesse momento, a entrada da cocaína, como vimos, aproximou o “pequeno criminoso” de uma “poderosa cadeia produtiva” que, segundo Machado da Silva (2010), não institucionalizada, precisava da violência para se reproduzir, além de aumentar o retorno financeiro da corrupção policial. Misse (1999) e Hirata e Grillo (2019) chamam essas relações escusas de “mercadorias políticas”.

A violência policial então passou a coexistir com a criminalização dos bairros populares e, paradoxalmente, com uma sociedade redemocratizada. Dessa forma, houve intensa transformação na qualidade das relações sociais, abaladas por práticas criminosas, o que mexeu na organização do cotidiano das grandes cidades brasileiras. Para Machado da Silva (2010), formou-se uma nova sociabilidade, submetida à sua própria lógica, não referenciada na ordem institucional-legal, mas capaz de produzir novas regras, sem destruir a sociabilidade tradicional, mas uma construção simbólica, objeto de práticas autônomas que designam uma “sociabilidade violenta”.

Essa noção tem sido revisitada por outros autores em face das suas configurações no real. Para Telles (2019), em alguns locais, no lugar de incursões violentas da polícia, passou a haver uma malha de controle, com dispositivos de vigilância e de monitoramento de fluxos de circulação, o que foi visto mais em Salvador nos grandes corredores do transporte público e não tanto dentro dos bairros. Para França (2015), algumas vezes, até mesmo facções criminosas repetem essa estratégia[1], embora essas ações não correspondam a um processo de pacificação, mas de “leis do silêncio”.

Os efeitos da sociabilidade violenta extrapolam as atividades criminosas e atingem as práticas cotidianas dos moradores. Para Conceição (2015), autor que trabalhou o intrabairro em Salvador, uma “interação violenta” inclui a forma como a polícia chega em alguns bairros, incluindo torturas (inclusive em espaços públicos utilizados também pelo narcotráfico, como em campos de futebol), destruição de documentos e de celulares de moradores, além de sequestros e desaparecimentos.

Assim como demonstrado pelos elevados números de nossa estatística, a violência letal poderia chocar, pelo seu caráter quantitativo, com altos índices, e qualitativo, com a brutalidade das ações, no entanto, acaba chocando mesmo pela sua “gratuidade”, aparentemente liberta de qualquer normativa, uma “forma de vida constituída pelo uso da força”, como escreve Machado da Silva (2004, p. 58).

Para a realidade socioespacial de Salvador, cidade de “periferias”[2], conceito de Pallone (2005), assim como o Rio de Janeiro, os dados de violência urbana sugerem uma “sociabilidade violenta” em alguns bairros, cuja matriz de leitura deste trabalho é a violência letal em contexto de segregação socioespacial e racial.


Estudos sobre o mercado de drogas na capital baiana revelam mudanças profundas na sociabilidade tradicional depois da chegada da lucrativa cocaína e do crack, onde antes a maconha era produto o principal e predominavam os empreendedores individuais. Esse novo modelo foi, paulatinamente, imposto aos comerciantes de drogas através do uso de diversas formas de violência, disputas por território e grande número de mortes de jovens, além de repressão e, por vezes, complacência policial (LIMA, 2013; CONCEIÇÃO, 2015; SANTOS-OLIVEIRA, 2016).

Desde os anos 1990, Machado da Silva e outros autores, principalmente do Rio de Janeiro, vêm tratando sobre a “sociabilidade violenta” na cidade carioca. Em Salvador, Lima (2013), Conceição (2015) e Santos-Oliveira (2016), tratam sobre a violência dos mercados de droga nos bairros populares da capital baiana. Portanto, na temporalidade deste trabalho, junto com as estatísticas de 2018-2020, buscamos nos aproximar dos autores de Salvador ao sugerir uma pesquisa em microescala nos bairros populares da Orla Atlântica.

Isso porque a “sociabilidade violenta” (conceito de Machado da Silva) não é um apenas um sentimento, mas uma vida coletiva em rede, dentro dos bairros, junto aos agentes da violência urbana. Por isso, seguimos sugerindo aproximações em nível de bairro, agora que estamos de posse dos dados de VL e do conceito de “sociabilidade violenta”.

NOTAS


[1] A TARDE. “Bandidos instalam câmeras nas ruas para vigiar polícia e são presos no Uruguai”. Redação. Salvador, 2 nov. 2017. Disponível em: <https://atarde.uol.com.br/bahia/salvador/noticias/1908624-bandidos-instalam-cameras-nas-ruas-para-vigiar-policia-e-sao-presos-no-uruguai>. Acesso em: 14 jul. 2020.

[2] No contexto brasileiro, “periferia” foi algo típico do processo de metropolização dos anos 1960-70 (PALLONE, 2005). Segundo a autora, “periferia” é usada para designar loteamentos irregulares, ou “favelas”, localizadas em áreas mais centrais, onde vive uma população de menor renda em contiguidade com a população de média e alta renda. Quando o bairro popular fica longe do centro e, geralmente, ao longo de linhas férreas e rodovias, de São Paulo e Rio (ou Subúrbio Ferroviário, em Salvador) a autora denomina “subúrbio”, ao invés de “periferia”.

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