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VIOLÊNCIA E CIDADE

DO BRASIL A SALVADOR

"Nosso foco é, centralmente, a relação entre violência urbana e desorganização social (...) Uma das nossas marcas é trabalhar com o que acontece nas cidades através de mapas, de análises espaciais etc. E com isso temos um novo foco na questão urbana da violência" (BEATO, 2012, p. 58).  

VIOLÊNCIA LETAL URBANA ENQUANTO UM OBJETO

Tratamos a violência letal na Orla Atlântica como um objeto, mas devemos explicar como se deu essa construção. Começando por “violência”, vimos que esse termo significava o uso de agressividade intencional e excessiva para cometer ato que resultasse em morte, acidente ou trauma, segundo a Organização Mundial da Saúde – OMS (KRUG, 2012).


Portanto, “violência” sempre foi um tema controverso, segundo Telles (2019), por ser carregado de polissemia, a depender de contextos e lugares, a partir dos quais foi mobilizado para nomear um problema. Nesse sentido, como a nossa questão foi verificar a letalidade (morte) que ocorria em cenário de segregação e vulnerabilidade social, precisávamos objetificá-la enquanto ação violenta letal de um conjunto de agentes agindo na cidade.

Assim, não nos concentramos em outro tipo de violência que não fosse a letal e, das esferas de violência que ocorrem no Brasil, rural e urbana, ficamos com a violência urbana. Para isso, não a tratamos como ocasionalidade no espaço, mas como uma “construção simbólica” (MACHADO DA SILVA, 2010), ou seja, parte de um conflito permanente, pois a violência é uma “atmosfera” (BUTLER, 2020a).

Dessa forma, “violência urbana” é uma representação coletiva, uma “forma de vida”, indicando um complexo de práticas consideradas ameaças à integridade física. Assim, há na violência urbana um estatuto de objeto, na medida em que a análise sociológica deveria incorporar a representação dos agentes (MACHADO DA SILVA, 2004).

Sobre essa objetificação, a violência urbana, no entendimento do urbanismo, não pode ser confundida com “criminalidade”, o que causaria problemas à crítica do urbano, porque tratou-se do estudo de uma violência que estava fundamentada e articulada nos processos de produção do espaço urbano e reprodução das relações sociais (SAMPAIO, 2012).

Para se medir essa violência urbana, em sentido geral, alguns indicadores “têm bases mais sólidas, como os números de homicídios” (OLIVEIRA, 2003, p. 243). Dessa forma, em se tratando de índices, percebemos um comportamento distinto ao redor do mundo. Feitas todas as ressalvas sobre comparabilidade, nos EUA, a taxa anual de homicídios era de 9,28 por 100 mil habitantes (2000), na Europa Ocidental, era de 2,70 (2000), e na Oriental, 15,73 (2000); homicídios não eram um problema na China, com taxa de 0,2 (CEZAR; CAVALLIERI, 2002).

Já no Brasil, a taxa foi de 27,8 (2018), segundo o Atlas da Violência (IPEA, 2020), enquanto nos EUA, Europa e China, a taxa não se alterou significativamente desde 2000. Isso pôde ser útil para explicitar o caráter singular de violência contemporânea e insegurança na América Latina “urbana”, no qual está incluído o Brasil. De acordo com Glebbeek e Koonings (2015), essa condição foi aplicada como estratégia para controlar o espaço urbano, por agentes armados, condenando “indesejados” e protegendo “privilegiados”.


Outra característica da violência urbana na América Latina foi que, na alta densidade demográfica das cidades, a visibilidade do impacto humano, em espacial da violência letal urbana foi alta, se tornando um aspecto endêmico de vida e condição urbana (GLEBBEEK; KOONINGS, 2015). Nesse sentido, vastas camadas de “indesejados” se encontravam em situação de vulnerabilidade socioeconômica, pela carência de garantias trabalhistas e de direitos.


Um aporte disso, para o nosso estudo, foi a chamada “vulnerabilidade civil” (KOWARICK, 2009), que se refere à ameaça à integridade física das pessoas, pela sua desproteção contra a violência praticada por delinquentes e pela própria polícia. Como solução paliativa, houve a criação de “laços de solidariedade” por parte dessa população, na maioria das cidades brasileiras, para que tivesse algum “equilíbrio instável” de sobrevivência nesse “viver em risco” (Op. cit., 2009).

Falando de causas brasileiras para a violência urbana, Oliveira (2003) apontou o processo de redemocratização[1] nacional. Esse autor apontou que a democracia não foi suficientemente acompanhada de medidas que reduzissem o elevado índice de exclusão social, negação sistemática de serviços públicos a setores da população “indesejados” e vulneráveis. Dessa forma, por meio de discriminação racial, sexual e outras, por parte do Poder Público, teria havido o aumento da violência urbana, mesmo no pós-ditadura da segunda metade dos anos 1980 (Op. cit., 2003).

Nesse contexto, portanto, também havia nos bastidores uma violência não física (negligência e discriminação), pelo caráter conflituoso permanente que havia em todas as sociedades, sobretudo a brasileira, com suas especificidades estruturais. Assim, a responsabilização por essas subjetividades foi complexa, “deixando rolar” uma política de polícia sobre certos grupos vulneráveis, com o extremo dos atos violentos (BUTLER, 2020b).


Com relação a essa ideia de conflito permanente de Butler (2020b), podemos relaciona-la às três temporalidades deste trabalho, como a manutenção da Segurança Pública aos moldes da ditadura, principalmente com polícias-militares (1988-2020), o crescimento do narcotráfico (1980-2020) e a conjuntura atual (2018-2020), onde autoritarismo, pauperização e pandemia foram a “tempestade perfeita” para o cenário de atual violência letal urbana medido em Salvador e no Brasil.

Logo, o conflito ganhou novas silhuetas no tempo, agravado pelo fato de que a redemocratização não recuperou uma cultura urbana de tolerância e negociação do pré-ditadura (ZALUAR, 2007). Foi a partir de 1989 que as mortes por causas externas (homicídios, acidentes, suicídios e MPP), no Brasil, passaram ao segundo lugar, perdendo apenas para as doenças do aparelho circulatório (CORDEIRO et al, 2007).


Por sua vez, os homicídios foram responsáveis por 33% dos óbitos por causas externas na década de 1990, e as armas de fogo contribuíram com mais de 50% dos casos (em 1991), e com cerca de 70% no ano 2000 (PERES; DOS SANTOS, 2005). Em 2020, 78% de todas as violências letais, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2021), aconteceram por meio de arma de fogo. Isso em meio a diversos decretos assinados pelo governo Bolsonaro, desde 2019, facilitando a aquisição de armas, aumentando a concessão de licenças para posse e porte de artefatos letais, além da complacência à falta de controle dos lotes de munições vendidos em território nacional.

Apenas 23% das munições vendidas no Brasil eram rastreadas por número de série (MARIZ, 2018), o que dificultava ainda mais a solução das ocorrências para se descobrir de onde veio e como foi adquirida a munição. De acordo com Cardia (2004), um dos principais argumentos da população brasileira para a posse de armas de fogo foi o de aumentar a segurança, entretanto, segundo a autora, a precariedade do sistema de registro e controle bélico no Brasil impedia qualquer tipo de permissão nesse sentido.


SITUAÇÃO DA VIOLÊNCIA LETAL NO BRASIL


Nesta parte, vamos ver como estão os índices de violência letal (urbana e rural) no Brasil, abrangendo homicídios dolosos praticados por civis (HDPC) e mortes provocadas por policiais (MPP). Em cenário nacional, desde 2007, a taxa de VL aumentou em 20%, até 2017, tendo uma queda expressiva em 2018, o menor nível em quatro anos, de 31,6 (em 100 mil hab.) para 27,5, uma oscilação de -12% (IPEA; FBSP, 2020), continuando a diminuir em 2019 (22,5), mas aumentando em 2020 (23,6) (FBSP, 2021).

Seguindo as nossas temporalidades a nível nacional, observamos que a continuidade de uma Segurança Pública de confronto (1988-2020) foi um fator de aumento das MPP e das mortes dos próprios policiais, segundo dados do DATASUS (2018), com expressivo aumento desses índices no cenário pandêmico de 2020, visto que as ações policiais continuaram em algumas cidades, mesmo com pessoas em confinamento e com instrução do Supremo Tribunal Federal (STF) para que não fossem realizadas operações em bairros populares durante a pandemia (FBSP, 2020).


Além disso, o crescimento do narcotráfico (1980-2020) acompanhou o aumento do número de jovens mortos, com queda nos números em 2018, mas com aumento na proporção de pessoas negras assassinadas com relação às demais (IPEA; FBSP, 2020).


Na conjuntura atual (2018-2020), a queda dos números de VL em 2018 não se sustentou até 2020 (FBSP, 2020), depois da ascensão da extrema-direita no Brasil, desde 2019, e seus decretos facilitando aquisição de armas, bem como da pandemia e da piora da pauperização, em 2020, além da intensificação das disputas pelo narcotráfico no Norte e Nordeste, respondida com política de confronto das polícias estaduais, puxando para cima o índice nacional (FBSP, 2021).

As hipóteses que foram apontadas para a diminuição de 2018, foram: (i) do ponto de vista institucional-nacional, a criação do Ministério da Segurança Pública (MSP), do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), e do Plano Decenal de Segurança Pública (PDSP); (ii) menos jovens no perfil demográfico; (iii) aperfeiçoamento de Políticas de Segurança Pública em alguns estados; (iv) vigência do Estatuto do Desarmamento (ED); (v) acomodação de forças criminosas e; (vi) desconfiança e diversidade das estatísticas, tirando da contagem “homicídios ocultos”[2] (quando autoria e motivação foram desconhecidas, com alta de 26% nas mortes que, por isso, ficaram fora da estatística de 2018, um recorde desde 2010) (IPEA; FBSP, 2020).

Outro dado preocupante foi o número de desparecidos no Brasil. Foram 82 mil em 2018 e 80 mil em 2019, dos quais não se soube sequer quantos estavam vivos ou mortos, podendo engrossar as estatísticas de homicídios (FBSP, 2019, 2020).


Para todas as VLs no Brasil, o mais afetado foi o jovem de 15 a 29 anos (51% das vítimas, em 2019) (FBSP, 2020). Além disso, apenas de 5% a 8% dos assassinatos foram levados à Justiça, o que alimentou um “ciclo de violência” (NEV/USP, 2019) e uma maior sensação de insegurança. Entre todos os assassinados de 2019, mais de 91% foram homens e, desses, mais de 75% foram pessoas negras (IPEA; FBSP, 2020).

As VLs tiveram 13% de realização pelas polícias (em 2019, com aumento de 2% em relação a 2018). Dessas mortes, 99% foram homens, 74% tinham até 29 anos e 79% eram negros (neste último aspecto, aumento de 4% em 2019 com relação a 2018).


Ademais, as perdas de policiais foram de 172 no país, em 2019, dos quais 65% eram negros (mostrando o forte caráter racial dos policiais da base hierárquica, soldados, cabos e sargentos) (FBSP, 2020).

Quanto às MPP na Bahia, o estado mostrou a quão confrontativa estava a sua polícia, aparecendo em 4° lugar na taxa de mortes provocadas pela polícia, por grupo de 100 mil habitantes, em 2020 (7,6), atrás apenas de Amapá (13,0), Goiás (8,9) e Sergipe (8,5) (FBSP, 2021). Em mortes de policiais, Bahia apareceu em 14º lugar, pois a “guerra contra às drogas” baiana nunca vitimou agentes públicos na mesma proporção do que civis (FBSP, 2021).

Apesar disso, as MPP nunca estiveram claras nas estatísticas oficiais (muitas vezes, nem apareciam, com exceção no Anuário e no Atlas). Sobre isso, houve a hipótese de que “a nomenclatura era, portanto, um elemento político capaz de retirar da contabilização um número considerável de mortes produzidas intencionalmente (...) (e sobre a rigidez estatística) podia variar também em função da vida pregressa da vítima” (SILVA-FERREIRA, 2017, p. 109). Vemos no Mapa 2 – Taxa de violência letal por UF (2018) a situação atual de todas as mortes violentas nos estados, incluindo as MPP, embora o Atlas chame apenas “homicídios”.

Antes de avançarmos para a Orla Atlântica, mostramos aqui um panorama da violência letal urbana na Bahia e em Salvador. De início, na Região Metropolitana de Salvador (RMS) se observou, a partir da década de 1990, um crescimento nas taxas de mortes por causas externas, sobretudo dos homicídios, que passaram de 14,9 mortes por 100 mil habitantes, em 1989, para 25,8 em 1990 (CBIA; UNICEF, 1991, apud CORDEIRO et al, 2007).


Em 1998, em Salvador, a taxa de homicídios era de 39,4 mortes/100 mil hab. (SANTANA; KALIL; OLIVEIRA, 2002, apud CORDEIRO et al, 2007). Esse aumento continuou e, segundo Beato (2012), a violência urbana na região Nordeste, em geral, aumentou, apesar do seu desenvolvimento econômico dos anos 2000, pois os governantes não souberam lidar com o inchaço dos bairros populares dentro das cidades em crescimento. Esse insucesso culminou em aumento de desigualdade, vulnerabilidade, sucateamento da Segurança Pública, falta de Justiça e aumento de violência urbana. Para o autor, Bahia e Alagoas seguiram essa lógica, enquanto Pernambuco investiu melhor.

A Bahia teve um salto na violência letal, desde o começo dos anos 2000, pois as Políticas de Segurança não acompanharam esse fenômeno e medidas importantes, como o maior preparo das polícias, deixaram de ser realizadas, além de uma migração do "crime organizado" do Sudeste para o Nordeste, por causa do aumento da repressão das forças de segurança naquela região (WAISELFISZ, 2012).


Ademais, fatores nacionais ocorreram, de 2000 a 2010, como o aumento do tráfico de drogas em municípios litorâneos, onde o comércio de entorpecentes se alimentou do alto poder aquisitivo de cidades turísticas, como Salvador (BOSELLI, 2008).

Em 2011, o Plano Estadual de Segurança Pública da Bahia (PLANESP) coincidiu com uma diminuição dos índices estadual e municipal. Em 2012, no entanto, houve tanto uma reorganização dos limites das Áreas Integradas de Segurança Pública (AISPs)[3] (o que alterou, de certa forma, a metodologia de contagem) quanto uma greve da PM/BA[4] (quando, na semana entre 31 jan. e 08 fev. 2012, houve 135 homicídios na RMS), que coincidiram com esse aumento.

Novamente, de 2015 a 2017, os índices voltaram a aumentar, em todas as instâncias, devido a uma nova dinâmica nacional de violência, associada à crise econômica que tomou corpo no Brasil a partir de meados de 2014 (HIRATA; GRILLO, 2019). Nesse contexto, houve disputa entre facções criminosas e postura do estado da Bahia a favor da repressão por meio da polícia (IPEA, 2019), ou seja, na opção do governo por enfrentamento direto e aumento do uso da força letal. Segundo estudos do NEV/USP (2019), o aumento da repressão às facções do Sul e do Sudeste foi contínuo, a partir de 2010, e responsável por levar a disputa de controle e recrutamento pelo o “crime organizado” às regiões Norte e Nordeste.

Em 2018, a queda das taxas nas três instâncias revelou outro movimento nacional, como foi descrito, onde a acomodação de forças criminosas e políticas estaduais mais eficientes fizeram baixar as taxas de homicídios (IPEA, 2019). No entanto, enquanto 2019 ainda registrava queda nacional e soteropolitana, a da Bahia voltava a subir devido às disputas do tráfico de drogas no interior do estado, até que 2020 registrou novas altas para todos os níveis, devido ao aumento das disputas do narcotráfico no Norte e Nordeste como um todo, com participação de facções nacionais, principalmente diante do cenário pandêmico de 2020, além do aumento da circulação de armas no país, pela política armamentista do governo federal, desde 2019 (FBSP, 2021).

Como evolução histórica, apresentamos o Gráfico 1 – Taxas de homicídios[5] em Salvador, Bahia e Brasil, mostrando a evolução de 14 anos, período analisado pelos Atlas da Violência 2019-21 (IPEA; FBSP, 2019, 2020, 2021; DATASUS, 2021), com a finalidade de mostrar as macrodinâmicas nas diferentes escalas, com destaque para a discrepância de Salvador em relação aos espaços nacional e estadual.


A seguir, fizemos uma análise dos índices de VL (HDPC e MPP), no município de Salvador, com base no DataSUS, onde pudemos obter mais atributos sociais. Levamos em conta as mortes por local de ocorrência, por faixas de escolaridade e etária, cor/raça e tipos de violência (HDPC, MPP e “homicídios ocultos”, sem autoria e motivação), a fim de criarmos um panorama da VL urbana na capital baiana, com relação a 2018.

O Gráfico 2 – Taxa de violência letal de acordo com a cor/raça e escolaridade para Salvador, segundo o DataSUS (2018), mostrou que os jovens negros foram os mais atingidos e a maior incidência de VL esteve entre aqueles com 4 a 7 anos de estudos (baixa-média escolaridade). Nessa faixa, o índice para jovens negros chegou a ser 12,5 vezes maior do que para jovens brancos, mostrando a forte relação entre VL e jovens de bairros populares.

Em 2010, a taxa de homicídios que atingia a população negra de Salvador (pretos e pardos – IBGE, 2010) fora de 78,3 em 100 mil hab. Entre jovens negros (de 15 a 29 anos), essa taxa chegara a 190,3 em 100 mil hab. (sem as MPP). Já a taxa de homicídios sobre a juventude branca, nesse período, fora de 61,8 em 100 mil hab. (WAISELFISZ, 2012), três vezes menor.

No Gráfico 3 – Taxa de violência letal de acordo com a cor/raça e faixa etária em Salvador (DATASUS, 2018), como fez Waiselfisz, em 2012. Entre jovens negros de Salvador (15 a 29 anos), a taxa de VL chegou a 31,0 por 100 mil hab., em 2018, enquanto para jovens brancos, de mesma idade e no mesmo período, chegou a 2,7 em 100 mil hab., ou seja, 11,5 vezes menor.


Levando em conta que a proporção da população branca de Salvador[6] era de 1/8 em relação à negra, na VL os gráficos apontaram a proporção de 1/12, com relação às taxas de jovens brancos em comparação a negros assassinados. Isso mostrou o aumento expressivo da distância entre esses índices, de 2010 a 2018 (quase quatro vezes), consolidando ainda o fator racial como um dos principais componentes a serem considerados nas análises do aumento de VL ultimamente:


No Gráfico 4 - Taxas das violências letais estudadas de acordo com a cor/raça e tipos de violência letal em Salvador (DATASUS, 2018), lembramos um fato importante dessas estatísticas. Chamou a atenção de Peres e Dos Santos (2005) a menor proporção de homicídios com relação às mortes por causas externas em Salvador, em 1991 (2,4% do total). Já em 2000, 19,8% das mortes por causas externas eram homicídios. No ano 2000, já eram 43,5% das mortes por causas externas, o que mostrou o gradativo aumento do homicídio como componente dos óbitos na cidade, com relação a suicídios e acidentes (como é estudado em Saúde Pública).

Em 2018, vimos no DataSUS (2018) que havia uma taxa substancial de “homicídios ocultos” ou “causa indeterminada”, sobretudo entre a população negra (8,6 em 100 mil hab.), como está no Gráfico 4, demonstrando a baixa qualidade de dados para essas vítimas.

Além disso, com relação aos homicídios dolosos praticados por civis (HDPC), o gráfico mostra novamente a disparidade na proporção de 1/9 dos HDPC de pessoas brancas com relação aos de pessoas negras. Sobre as mortes provocadas por policiais (MPP), ainda maior foi essa desigualdade, com 1/15 como proporção de mortes de pessoas brancas comparadas àquelas de pessoas negras. Lembrando que a proporcionalidade da população branca em Salvador foi de 1/8 em comparação às negras. A cor da pele foi novamente um fator determinante para todos os tipos de violências letais desse gráfico, sobretudo para as MPP, mostrando o direcionamento dado, tanto pela Política de Segurança Pública quanto pelo laisser faire dos agentes responsáveis pelos HDPC de pessoas negras na cidade de Salvador.


Seguindo a análise de 2007 a 2020 (sendo que para Salvador os últimos dados que obtivemos foram de 2019), com o tráfico de drogas em consolidação (1980-2020) e Política de Segurança Pública de confronto acontecendo (1988-2020), analisamos as taxas de MPP no município, em comparação àquelas da Bahia. Portanto, no Gráfico 5 – Evolução das taxas de MPP em Salvador e na Bahia (FBSP, 2021; DATASUS, 2019), foi nítida a tendência de aumento, principalmente na capital, até 2018.


Havia, então, uma crescente ação estatal da “guerra às drogas”, que deslocava o seu eixo para as capitais nordestinas naquele momento, desde 2010. Em 2011, novas Políticas Estaduais de Segurança Pública “seguraram” as MPP na Bahia e na capital. No entanto, em 2012, a greve da PM/BA, contraditoriamente, trouxe alta expressiva nas ações letais da polícia. Já o salto desde 2015 foi relativo à intensificação da política do enfrentamento, com destaque para a Chacina do Cabula naquele ano.


Em 2019, Salvador teve súbita queda de mais de 50% nas MPP, com relação ao ano anterior, possivelmente, por maiores investimentos em inteligência e investigação nas operações policiais da capital. No entanto, na Bahia, a taxa cresceu 47% em 2020 (e provavelmente em Salvador), em operações de “combate às drogas” acontecendo no cenário pandêmico, dentro de bairros populares.


VIOLÊNCIA LETAL URBANA EM SALVADOR: ESTUDOS ANTERIORES


Houve autores que nos trouxeram um panorama dos homicídios dolosos praticados por civis (HDPC), desde os anos 1980 em Salvador, portanto, o início da temporalidade do tráfico de drogas, como Nunes e Paim (2005, p. 463), onde: “os bandidos não respeitavam os moradores no bairro e os roubos e assaltos eram praticados de forma indiscriminada, a qualquer hora do dia e atingindo qualquer pessoa”.


Então, segundo os autores, havia “grupos de extermínio”, contratados e pagos, que concebiam armadilhas (“botes”) aos assaltantes dos bairros populares:

"Com a participação conjunta de moradores e da polícia, ou no formato de uma violência generalizada, onde os próprios moradores do bairro se empenharam em fazer justiça com as próprias mãos (linchamentos) [...] Esse período é compreendido pelos moradores como um “período de exceção”, onde a “limpeza” se fez necessária [...] Percebe-se que a ideia de “limpeza” não se relaciona linearmente à ideia de transgressão (para os moradores), nem mesmo à ideia de práticas criminosas graves, como o homicídio [...] essa ideia é a partir de uma herança coronelista"[7] (NUNES; PAIM, 2005, pp. 463-464).

Esse panorama do prelúdio do tráfico de drogas foi explorado também por Conceição (2015), que contou que o trabalhador de um bairro popular podia enxergar no indivíduo do “mundo do crime” um algoz, passando para ele toda a sua frustração, e que isso dava ao linchamento[8] (crime no Direito Penal, mas não para quem o cometia), ares de comoção por outro crime violento anterior. Os estupradores, por exemplo, eram vistos como execráveis.

Nos anos 1990, Peres e Dos Santos (2005) já mostravam que a presença de arma de fogo em casa representava um risco maior de morte de mulheres em Salvador, devido à violência doméstica (feminicídio). Ainda nessa década, Paes-Machado et al (1997) demonstravam uma preocupação com a incidência das MPP em Salvador, relacionando-as a quatro aspectos: (i) orientação governamental no uso da violência; (ii) falta de consciência de cidadania; (iii) nível de aceitação social da violência para resolver conflitos e; (iv) padrão de relacionamento entre governo e população visando regular a cidadania de certos grupos.

Outra preocupação de Paes-Machado et al (1997), nessa época, foi a violência interpessoal na capital baiana. Embora as atribuições de responsabilidade se concentrassem nos “marginais” e policiais, a família e a vizinhança não estavam isentas de agressões mútuas. Assim, em alguns bairros de Salvador, foram apontadas falhas em mecanismos de controle informal interno (BRANDÃO, 2007) e delinquência endêmica (PAES-MACHADO et al, 1997).

Já nos anos 2000, Paim et al (2009) realizaram um estudo de caso tomando como objeto o Plano Intersetorial Modular de Ação para a Promoção da Paz e da Qualidade de Vida na Cidade do Salvador (PIMA/PP/QV/CS), elaborado pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFBA). Tratou-se de uma análise para a diminuição de mortes por causas externas (homicídios, suicídios e acidentes) que, nessa época, preocupavam os autores devido ao aumento exponencial desde o final dos anos 1980. Mesmo propondo a agregação de distintos atores e setores da estrutura organizacional, o PIMA/PP/QV/CS não foi suficiente para incentivar a cooperação no combate à violência, inviabilizando o plano (PAIM et al, 2009).

Nos anos 2010, os jovens já eram apontados como as principais vítimas de homicídios em Salvador, em sua maioria, acometidos pelo tráfico de drogas, mas podendo ser atingidos também pela violência nas relações afetivas (FERREIRA-SANTOS; BASTOS, 2011). No ano de 2014, Matos-Andrade (2016) fez a análise de homicídios dolosos praticados por civis, em Salvador, através de dados da SSP/BA, descobrindo que a maioria das vítimas (72%) tinha ao menos o ensino fundamental completo, em sua maioria trabalhadores de serviços (23%) e, nessa categoria, vendedores, comerciantes, serviços gerais, porteiros, garçons e seguranças, ocupações que não exigiam alta qualificação técnica. Das motivações, naquele ano, 64% teriam relações com o narcotráfico (MATOS-ANDRADE, 2016).

Em 2016, os dados de Salvador já sugeriam que a distribuição desigual da violência letal poderia constituir uma “necropolítica”, conceito de Mbembe (2016), de gestão do espaço urbano e controle estatal da população, por omissão e cumplicidade, com padrões mórbidos de relações raciais (CALAZANS, 2016). Para essa autora, os bairros com maior concentração de pessoas negras concentravam altos índices de letalidade violenta, como Pernambués e Itapuã.

No final dos anos 2010, o jovem masculino ainda já era a principal vítima de homicídio doloso praticado por civis em Salvador, enquanto a mulher jovem era a maior vítima de morte por violência doméstica. Portella et al (2019) relataram esse fenômeno e o tráfico de drogas, indicando que a pesquisa tratava o homicídio como “epidemia”, comum na área de Saúde.


No entanto, pensamos ser problemática essa abordagem do ponto de vista sociológico. Apesar disso, diferentemente dos demais trabalhos em Saúde que consideravam o local da residência da vítima para a contabilização dos homicídios, Portella et al (2019) consideraram o local da ocorrência, o que se aproximava mais de uma visão do espaço urbano[9], com parâmetros como esgotamento sanitário e índice de “pobreza” dos bairros. Nesse sentido, nem todos os bairros com elevada “pobreza” apresentaram alto coeficiente de homicídios, porém o estudo mostrou uma forte associação de homicídio com tráfico de drogas, “pobreza” e homens de 15 a 49 anos.

Em 2007, Francisco Costa estabeleceu, a partir do estudo espacial do homicídio doloso praticado por civis, em Salvador, uma responsabilidade repartida entre os diferentes atores da administração da cidade, apontando para a forma como a administração pública tratava a questão urbana na perspectiva de um modelo de organização, social e físico, propenso à violência urbana. O autor concordou que a espacialização da violência não podia ser explicada somente com dados econômicos, pois os homicídios eram registrados em territórios com perfis diversos. No estudo, Costa (2007) evidenciou uma forte relação dessas mortes violentas com o déficit de infraestruturas, afirmando que existe relação com a menor presença do Estado.

Marx et al (2016) espacializaram os homicídios dolosos praticados por civis no bairro de Mata Escura, em Salvador, analisando seus aspectos socioeconômicos e infraestruturais. Quanto à maior incidência da criminalidade letal, as estatísticas apontaram para o aumento nas áreas de habitações precárias. Além disso, os autores abordaram exclusivamente a visão das autoridades policiais que, além de não fornecerem dados de MPP, culparam as ladeiras como dificultadoras do policiamento ostensivo.

Calazans (2016), outra pesquisadora da espacialização de homicídios em Salvador, com ênfase no espaço urbano, utilizou uma amostra de 2010 a 2015 para questionar as mudanças de reposicionamento de bairros dentro das AISPs (2012) como inferência nos índices e concentração dos homicídios em bairros onde a população era de maioria negra. Outra contribuição do estudo foi observar a proporcionalidade da aplicação da Política de Segurança Pública, que pode ser inversa nos locais de maior índice de homicídios. Por exemplo, a menor presença de Bases Comunitárias de Segurança (BCSs) nas duas regiões de maiores taxas: o Subúrbio (3 BCSs – Rio Sena, São Caetano e Fazenda Coutos) e o Miolo (2 BCSs – Narandiba e Cajazeiras). Enquanto isso, na Orla Atlântica, eram 5 BCSs, de acordo com a SSP/BA (2020) – Calabar, Santa Cruz, Chapada do Rio Vermelho, Nordeste de Amaralina e Bairro da Paz.

Como um exercício de observação do que os autores explicaram acima, sem naturalizar uma relação direta entre “pobreza” e criminalidade letal, analisamos a espacialização dos homicídios dolosos praticados por civis (HDPC) em Salvador (pois não tivemos acesso aos endereços das MPP de todo o município), realizando quatro sobreposições: (i) sobre o mapa de densidade demográfica; (ii) sobre o mapa de renda per capita de até 1 SM; (iii) sobre o mapa de tipologias socioespaciais e; (iv) sobre o mapa de porcentagem de pessoas brancas.

De acordo com os estudos dos autores que espacializaram a violência em Salvador, era esperada a concentração dos HDPC em regiões de "densa pobreza", no entanto, além da mancha de homicídios (SSP/BA, 2015) não cobrir todas as áreas com essas características, também as transbordou, chegando às densidades médias e baixas, rendas maiores, tipologias superiores e territórios de população branca, sobretudo na OA.

As maiores relações entre a mancha de HDPC e os mapas com indicadores sociais foram com a densidade populacional e a cor da pele que, principalmente no Subúrbio e no Miolo, coincidiram com a maior concentração de homicídios dolosos praticados por civis. Todavia, menor renda e tipologia socioespacial popular não foram as variáveis que mais "atraíram" a mancha de homicídios dolosos, mostrando haver maior complexidade nesse fenômeno.

Enfim, os estudos anteriores mostraram que o fenômeno estava fortemente relacionado à precariedade espacial, mas não absolutamente. Seguimos a hipótese de que, na verdade, a precariedade poderia atrair para si os demais fatores, como o tráfico de drogas e a ação mais repressiva e letal da polícia. Muitas vezes, ocorreriam juntos, motivados por uma atratividade econômica da região com relação ao narcotráfico e uma consequente “guerra às drogas” por parte do Poder Público.


Além disso, precariedade espacial e vulnerabilidade social aumentariam o risco de que a população desses territórios (espacialmente daqueles segregados por barreiras físicas e subjetivas) estivesse em risco de violência urbana e fosse por ela cooptada.

Ainda assim, as dinâmicas internas, como os acordos entre grupos criminosos (muitas vezes envolvendo agentes públicos), a “lei do silêncio” (ou “paz armada”, segundo Machado da Silva, 2004) e os “tribunais do crime”, dentre outros fatores interpessoais, poderiam afetar os índices de violência letal, para mais ou para menos.

NOTAS

[1] Sobre a história da redemocratização na Bahia, não houve muita mudança na política conservadora de Segurança Pública, até 2007, quando o estado esteve comandado pelo carlismo, movimento político que vinha de três mandatos de Antonio Carlos Magalhães (ACM) como governador, sendo dois desses nomeados por governos militares durante a ditadura, e um outro pós-redemocratização, marcado por tecnocracia administrativa, clientelismo, controle dos veículos de comunicação, conservadorismo político e modernização econômica (SOUZA, 2004).

[2] Sobre a taxa de “mortes por causa indeterminada” (“homicídios ocultos”, para o Ministério da Saúde), cujo último levantamento do DataSUS foi de 2018 (Y10-Y34 - eventos cuja intenção era indeterminada), a Bahia teve o segundo maior índice do país, por grupo de 100 mil hab. (10,55), onde o primeiro foi Roraima (10,73), segundo o DataSUS (2020), dados compilados do sistema. Isso mostrou a baixa qualidade dos dados na Bahia. Nesta pesquisa, consideramos na contagem as “causas indeterminadas”, pois não deixam de ser VLs a serem contadas, assim como o Anuário Brasileiro de Segurança Pública as considera, embora separando-as em outra categoria.

[3] As Áreas Integradas de Segurança Pública (AISPs) foram criadas pelo Decreto Estadual nº 13.561, de 2 de janeiro 2012, como forma de coincidir circunscrições de delegacias de Polícia Civil com áreas de Polícia Militar.

[4] FOLHA DE SÃO PAULO. “Homicídios chegam a 135 na região de Salvador durante greve da PM”. Redação: São Paulo, 8 fev. 2012. Disponível em: <https://m.folha.uol.com.br/cotidiano/2012/02/1045729-homicidios-chegam-a-135-na-regiao-de-salvador-durante-greve-da-pm.shtml>. Acesso em: 5 jul. 2020.

[5] A metodologia do IPEA; FBSP (2020) considera, como taxa de homicídios, os óbitos por agressão (homicídios dolosos praticados por civis – HDPC) e as MPP.

[6] “No último estudo populacional de 2010, Salvador tinha 2.675.656 habitantes. Desse número, 2.125.863 se declaram negras (pretas e pardas). Sendo assim, de acordo com o IBGE, 79% da população de Salvador é negra” (CALAZANS, 2016, p. 573).

[7] Sobre o coronelismo na Bahia, relatamos o carlismo na Nota 22, como o último movimento político com essa característica no estado. O linchamento, assim como o coronelismo, “trata-se de um processo civilizador que, no Brasil, foi desenvolvido de forma desigual [...], tosca e rudimentar” (NUNES; PAIM, 2005, p. 464).

[8] Morte de um suspeito de crime, por uma multidão, com o intuído de se fazer “justiça com as próprias mãos”.

[9] Quando considerado o local de residência da vítima, deu-se prioridade à análise de uma população, e todas as suas características, atingida pelo fenômeno do homicídio, portanto, foi feito um estudo epidemiológico do crime, comumente utilizado pela área da Saúde Pública. Já a análise do homicídio do ponto de vista do local da ocorrência revelou a sua relação com o espaço urbano, e todas as suas relações com a vítima e o agente, metodologia comumente utilizada pela Criminologia.

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