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TERRITÓRIOS DE
VULNERABILIDADE E RISCO

CRIMINALIZAÇÃO DA "POBREZA" E MORADORES “SOB DOIS FOGOS”

Precisamos desvendar a sociabilidade violenta que se instaurou em Salvador. Por isso, é preciso dissociar a violência urbana (não somente letal, mas física e subjetiva), da ideia de que essa seria concernente às pessoas de bairros populares[1]. Começamos vendo por Sara Caputo (2004), o conceito de “pobreza” como sendo resultante de uma confrontação entre a necessidade e a ausência nas famílias, de um conjunto de predicados em relação ao direito e à igualdade. Neste trabalho, somente utilizamos “pobreza” como um conceito para desmistificar a sua criminalização, buscando não reforçar o seu estereótipo.

Na sequência, evidenciamos estudos da Sociologia, desde os anos 1970, falando da dissociação de “pobreza” e violência urbana, embora muitos que a negassem, depois a reafirmem. Portanto, ao longo desta pesquisa, procuramos trazer à luz algumas dinâmicas políticas, econômicas e sociais, com o fim de não reforçar uma relação direta, uma causa e consequência.

O fenômeno da violência urbana é inseparável de alguns bairros populares, isso não se pode negar, por seus correlatos de “pobreza” e vulnerabilidade concentrados ocorrerem juntos, embora um não seja a causa do outro. Assim, nem todo local de “pobreza” tem maiores índices de violência urbana, mas todo local com maiores desses índices violentos são de “pobreza” (BEATO, 2012).

Esses bairros populares, sejam aqueles com maiores ou aqueles com menores taxas de violência urbana, passam pela dificuldade de expansão de direitos a cidadania, por conta de uma sociedade fortemente hierarquizada e estigmatizadora da “pobreza”, e cujo processo se acentuou nas últimas décadas, com aumento da precarização do trabalho, do desemprego, da vulnerabilidade social e do risco à violência, paralelamente às restrições de responsabilidade social do Estado e à destituição de direitos. Essa destituição tem duas características: a naturalização do fenômeno e a invizibilização dos vulneráveis por parte da sociedade, com efeitos de separação social (KOWARICK, 2009).

"Temos hoje um viés complicado do entendimento da violência, uma vez que a taxa baixíssima de apuração das responsabilidades pelos homicídios leva a uma simplificação na explicação oficial dos crimes, imputando somente ao tráfico de drogas a causa de mortes difusas (em que corpos 'desovados' não se relacionam com os autores da ação), onde o mistério da execução se resolve na imagem imprecisa de uma 'guerra do tráfico', e cujas implicações não são apuradas, como se não merecessem maiores atenções, já que os atores envolvidos não têm maior peso social ou são figuras passiveis de descarte" (ESPINHEIRA, 2008, p. 43).

Se “pobreza” não gera, necessariamente, violência urbana, e bairros populares não devem ser estigmatizados como espaços violentos, também nos cabe explorar diferentes metodologias de investigação capazes de verificar possíveis relações entre condições de vida das populações e determinadas manifestações da violência, como seria o caso dos homicídios (PAIM et al, 2001).


A respeito dessa associação, indica-se que violência urbana e “pobreza” fazem parte de um ambiente mais complexo que aumenta o risco de violência (GLEBBEEK; KOONINGS, 2015), assim como pode vir associado a outros riscos ligados à vulnerabilidade (ambiental, infraestrutural, sanitária etc.). Citando Davis (2012), Glebbeek e Koonings (2015) apontaram uma narrativa urbana sobre como e por que certas qualidades sociais podem se relacionar e se tornarem características construídas do espaço.

Haesbaert (2014), lançando mão do aumento das “favelas” no Rio de Janeiro, pontuou que o discurso da criminalização da “pobreza” foi motivado pela desterritorialização referente à perda intensificada de controle dos territórios por parte do Estado, onde grupos subalternizados tornaram-se objeto de medidas de “contenção” e de controle de circulação, estimulando e promovendo a proliferação de poderes paralelos, como milícias e narcotraficantes.


No caso soteropolitano, essa criminalização significou que “ser morador de uma ‘invasão’ era uma sobreposição de preconceitos, colocando sobre esses indivíduos um feixe de forças com caráter incriminador e discriminador” (CONCEIÇÃO, 2015, p. 40).

"Sob uma visão psicológica da criminalização, sobressai o maniqueísmo, ora ingênuo, ora perverso, que sustenta a separação entre o ‘eu’ e o ‘outro/diferente’ como bastando para as políticas públicas de segurança, quando se sabe, na realidade, que a segregação e a desigualdade socioeconômica são fatores importantes para o aumento da criminalidade” (FORNASIER et al, 2019, p. 228).

Portanto, a associação absoluta de violência urbana e “pobreza” não deve ser vista como verdadeira, mas fruto de um pensamento hegemônico. “O problema parece estar em associar a violência urbana [...] aos excluídos. Pois a violência (urbana e rural) sempre foi empregada, no Brasil e no mundo, para forçar o consenso, defender a ordem social a qualquer custo” (ZALUAR, 1999, p. 11). “Sem dúvida, há conexões entre a presente violência urbana e o passado de violência predominante rural no Brasil” (ZALUAR, 2007, p. 37), portanto, uma constituição histórica. Nas grandes cidades brasileiras, os vulneráveis à violência urbana são pessoas que vivem “sob dois fogos” ou “fogo cruzado”: primeiro, a polícia que os oprime indistintamente e, segundo, o tráfico de drogas, que disputa seus territórios para o comércio ilegal de entorpecentes (ZALUAR, 1999; GRILLO, 2019; TELLES, 2019).

No entanto, acreditamos que se deveria administrar conflitos permanentes, aqueles surgidos a partir do momento em que impusemos limites regionais, nacionais, religiosos, raciais e de gênero às nossas relações, pelas quais somos definidos, ou seja, superar as nossas identificações de grupo que reproduzem a lógica de exclusão (BUTLER, 2020b).

Seria preciso que a sociedade entendesse o que está em jogo nesse cenário de “guerra e paz”[2] (TELLES, 2019), já que essa “guerra” alimenta a estigmatização dos moradores de bairros populares perante a sociedade, além de puni-los com a ruptura frequente de suas rotinas, por tiroteios e com a alta incidência de mortes intencionais e acidentais dos próprios moradores (GRILLO, 2019). Tal estigmatização está profundamente arraigada na sociedade e assimilada pelo aparelho policial, tão forte e atravessadora que até mesmo os reformistas discursariam equivocadamente que “pessoas enveredaram no caminho do delito por causa de sua condição de pobres” (OLIVEIRA, 2003, p. 247).


Todavia, isso não significa que moradores de bairros populares também não possam ter comportamentos delituosos, por exemplo, dos quais alguns são vítimas por causa de seu envolvimento com a criminalidade, assassinados por rivais do “mundo do crime”. Em geral, os moradores de bairros populares não são potencialmente violentos, mas é a sua situação social que os torna vulneráveis e suscetíveis ao risco violento.

No imaginário urbanístico, a criminalização das pessoas dos bairros populares é um pensamento que encontra amplo apoio junto às pessoas de classes média e alta, por acreditarem, além de outros preconceitos, que pessoas com menor poder aquisitivo sejam “improdutivas” ou “usurpadoras dos recursos do Estado”, para o “bem-estar próprio” (WACQUANT, 2003). Contudo, quem vincula somente a renda à criminalidade, esquece o papel que a cultura, os valores, as normas sociais e os símbolos desempenham, porque “a autoestima é tão importante para a sobrevivência quanto um prato de comida” (SOARES, 2019, on-line).


Na verdade, a origem da violência urbana poderia ser dividida em três grupos: (i) a violência estrutural, uma das consequências de desigualdade social e da falta de bens essenciais à vida; (ii) a violência cultural, expressa entre pares, como agressões familiares e; (iii) a violência da delinquência, dos crimes contra a pessoa e contra o patrimônio, incluindo a violência entre criminosos e as determinadas ações ilegais policiais (MINAYO; SOUZA, 1993, apud RAMOS-SOUZA, 1998).

Na contemporaneidade (2018-2020), transformações na dinâmica do crime estão em andamento no contexto de crise econômica e pandêmica no Brasil. Reconfigurações no tráfico de drogas, nas milícias e no ciclo de roubos e furtos trouxeram novas complexidades, consideradas no contexto das grandes cidades brasileiras e, sobretudo, potencializadoras do processo de estigmatização dos territórios envolvidos (HIRATA; GRILLO, 2019), afetados ainda pela pandemia do coronavírus, a partir de 2020, cujo risco sanitário potencializou a vulnerabilidade social.

NOTAS


[1] O conceito “bairro popular” é tratado com uma abordagem mais complexa do que “bairro de menor renda”. Embora alguns autores não tratem de “bairro popular” nesses termos, aqui neste tópico o uniformizamos para falar de “favela”, “invasão”, “territórios de pobreza” etc.

[2] A “guerra” constituiu algo como um mapa cognitivo, a partir do qual os conflitos são postos como um problema, inclusive ansiando por soluções extralegais. São as chamadas “figurações da guerra urbana” (TELLES, 2019).

Image by John Moeses Bauan

QUANDO TERRITÓRIOS
CONCENTRAM VULNERÁVEIS

URBANIZAÇÃO DE SALVADOR E DE SUA ORLA ATLÂNTICA


Começamos a falar de urbanização soteropolitana a partir do século XIX, com a ocupação que se deu nas cumeadas da cidade, com áreas de vale inaproveitadas ou destinadas à subsistência. Depois disso, foram expansões isoladas, paralelas à Baía de Todos os Santos, rarefeitas em chácaras e campos abertos, sobre vales de antigos latifúndios de pecuária e cana-de-açúcar, mas sempre sob a lógica da propriedade privada.


A partir da metade do século XIX, por exigência das elites e com a chegada do transporte mecanizado, houve grande expansão de vias à procura de “arraiais de veraneio” (inclusive em direção à Orla Atlântica, no Rio Vermelho). O crescimento demográfico, que era lento até meados do século XIX, passou a acelerar devido às primeiras grandes levas de migrantes rurais, em contexto de crise econômico-escravocrata e secas, formando vizinhanças esparsas (BRANDÃO, 1978; CARVALHO-SOARES, 2009).

Entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do século XX, a urbanização soteropolitana se deu de forma muito lenta. Até o final dos anos 1940, a economia de Salvador e de seu tradicional interior rural, o Recôncavo Baiano, era baseada em plantio e comércio de cacau, açúcar e fumo. Além disso, a estagnação da capital nos anos 1920 a 1940 somava-se a uma grande parte da população economicamente ativa formada por descendentes analfabetos de pessoas escravizadas (ALMEIDA, 2008).

Nas primeiras décadas do século XX, apesar da redução do êxodo rural, novas habitações precárias se agruparam aos bairros populares anteriormente formados, enquanto as pessoas com maior renda preenchiam vazios dos bairros consolidados (BRANDÃO, 1978; CARVALHO-SOARES, 2009). A presença de ocupações populares próximas ao Centro Antigo deu início a discussões “higienistas” no combate à “desordem”, pois, em nome da saúde pública, pregava-se a ideia de que “a pobreza se eliminaria com o desenvolvimento”, ideia hegemônica do Brasil do início do século XX, baseada na reforma de Paris. Havia também no país, nesse período, uma expectativa de crescimento industrial e de formação de um mercado de trabalho “moderno” (MARTINS-SANTOS et al, 2015).

A situação econômica da Bahia e de Salvador começou a mudar entre os últimos anos da década de 1940 e o final dos anos 1950. Iniciativas estatais contribuíram para isso, como a construção da usina hidrelétrica de Paulo Afonso (norte do estado), a implantação das atividades de extração e refino do petróleo no Recôncavo (ligada ao descobrimento desse recurso no Brasil, em Salvador, e à criação da Petrobrás), a construção da BR-116, ligando Salvador às regiões industriais do Centro-Sul do país, e a criação do Banco do Nordeste e da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE (Op. cit., 2015).

De 1940 a 1950, teve lugar em Salvador uma descentralização pouco planejada, periférica – que acabou por gerar quatro tipos gerais de ocupações, segundo Brandão (1978): (i) trechos degradados das zonas norte e sul de transição do centro da cidade; (ii) séries de habitações conhecidas por “avenidas”; (iii) bairros populares surgidos ou incrementados na primeira metade do século XX; (iv) “invasões”, ou bairros de crescimento rápido, entre 1950 e 1970.

Nesse período (década de 1950), o centro comercial da cidade (ainda vizinho ao porto) alargou a sua faixa de transição, empurrando para fora dos seus limites as pessoas de menor renda, enquanto aquelas de média e alta renda, não mais encontrando espaço no centro, voltariam a pressionar as áreas de ocupação irregular (BRANDÃO, 1978; CARVALHO-SOARES, 2009). A cidade experimentou, nessa época, um grande crescimento demográfico causado, em parte, e mais uma vez, pelas migrações rurais. As pessoas de menor renda passaram a ocupar antigas edificações, deixadas vazias, além de vales e encostas (CARVALHO; PEREIRA, 2008).

A “velha estrutura fundiária”[1] de arrendamento de terras públicas (a "enfiteuse", quando se deixa ocupar, mas sem passar a propriedade) contribuiu para as ocupações espontâneas e as posses de terra, em detrimento do título de propriedade, sobretudo, a partir dos anos 1950, no interior do município. Assim, o aumento da demanda residencial e os movimentos espaciais internos ligados aos interesses imobiliários, encontraram uma estrutura fundiária extremamente rígida, cabendo às pessoas de menor renda “a função de forçar a ocupação”, expandindo a superfície ocupada, valorizada e depois apropriada pelo mercado (BRANDÃO, 1979).

Já em 1968, a Lei Municipal de Reforma Urbana (nº 218) foi um marco regulatório para o mercado capitalista e soteropolitano de terras, que ansiava por uma regulamentação desde o crescimento da demanda por habitação dos anos 1940, e da captação de poupanças para a habitação, em 1964. Isso alienou uma grande quantidade de terras da prefeitura, principalmente no centro geográfico do município (ao longo da atual Av. Paralela), gerando a expansão do capital imobiliário sobre áreas públicas. Iniciava-se o processo de verticalização das áreas nobres, com a demolição de grandes residências e a ocupação de novas áreas ao longo da Av. Paralela e da Orla Atlântica (BRANDÃO, 1978; CARVALHO-SOARES, 2009). Com isso, se implodia a ordem antiga da "enfiteuse" e começava uma nova dinâmica no desenvolvimento urbano da cidade.

Os bairros populares, que haviam “aberto” espaço no interior do município, então passaram a disputar a localização com o avanço das pessoas de classes média e alta sobre essas terras, começando a cercar os vazios urbanos, chamados “espaços do mercado”, disponibilizados pela Reforma Urbana à iniciativa privada. Pensando nisso como um processo amplo, “o desbloqueio fundiário das áreas periféricas de arrendamento, através das ocupações coletivas por ‘invasão’, foi marcado por gradativa substituição do sistema de arrendamento pelo chamado capital imobiliário moderno” (GORDILHO-SOUZA, 2008, p. 67). Isso teve lugar em todo o município, mas foi na Orla Atlântica onde se mostrou intenso, devido ao eixo de expansão da cidade e a concentração das pessoas de alta renda (BRANDÃO, 1979).

Após a Reforma Urbana (1968), iniciaram-se as obras do Sistema Viário[2], agora sobre terras privatizadas e com a criação do Centro Administrativo da Bahia (CAB), na Orla Atlântica, implodindo de vez o centro tradicional e puxando a cidade para as melhores terras possibilitadas pela Reforma Urbana, mesmo as que resultaram da expulsão dos que habitavam as “invasões”. Essa corrida imobiliária abriu pouca oferta ao mercado médio e popular, enquanto a infraestrutura urbana cresceu tímida e mal acabada nos bairros populares (BRANDÃO, 2002). Dessa maneira, a segregação socioespacial (e racial, grifo nosso) se aprofundou em termos de estrutura e legalidade da moradia, de sua localização no tecido da cidade, de mobilidade urbana e de acesso a serviços (ARANTES, 2015).

A economia de Salvador, entre 1950 e 1980, baseou-se em uma nova indústria (além daquela de pequeno porte, já instalada na Cidade Baixa desde o início do século XX). A grande indústria, dinâmica e voltada à exportação, levava a reboque um “setor terciário” de crescimento derivado e dependente da demanda local. Ademais, os investimentos industriais da Petrobrás na Bahia permitiram a expansão de empresas baianas de construção civil pesada. A exemplo da Odebrecht, que cresceu com o incremento do gasto público em obras de infraestrutura (estradas, pontes, barragens, abastecimento de água, saneamento e avenidas), entre o final dos anos 1960 e a década de 1980 (ALMEIDA, 2008).

Com a implantação da Av. Paralela (Sistema Viário), em 1974, abriu-se o novo caminho entre o Novo Centro e o Aeroporto, passando pelo CAB, sendo marco para a formação do que conhecemos hoje como Orla Atlântica. Esse fenômeno foi acentuado, no final dos anos 1970, com a construção do primeiro shopping center fora do centro, no vale do Camarajipe. Para o local também foi transferida a nova Rodoviária e instalado o primeiro hipermercado da capital. Com isso, a OA passou a concentrar os maiores interesses e investimentos do mercado imobiliário, sobretudo de alta renda (CARVALHO; PEREIRA, 2008).

No mesmo período (anos 1970), ocorreram a expansão da construção civil residencial e a valorização da terra urbana em novos bairros de classe média (Pituba, Caminho das Árvores e outros), na região da OA. Isso incentivou, também, o varejo de bairro, bem como a pequena indústria e o comércio de materiais de construção.


Seguindo uma tendência de qualquer grande cidade das últimas décadas do século XX, Salvador iniciou o seu processo de diversificação, expansão e modernização, sob a forma de um Novo Centro, segundo Almeida (2008). Houve o abandono do Centro Antigo, como falamos, e a migração de organizações públicas e privadas para o novo polo intraurbano (ao redor do shopping center do Camarajipe), orquestrados pelo governo estadual e pelo capital imobiliário.

Essa modernização, iniciada no final dos anos 1960, fez abrir novas avenidas no eixo Sul-Norte (Av. Paralela), ligando espaços ainda vazios, mas apropriados por empresas imobiliárias, perto do Aeroporto, do CAB e de novos bairros residenciais das pessoas de classe média assalariadas. Estava em curso a migração das empresas do Centro Histórico em direção à OA, desde a segunda metade dos anos 1970, se acelerando nos anos 1980 e se completando na década de 1990. A transferência dos serviços para uma Linha Atlântica (Av. Paralela) – e não mais contornando a Baía de Todos os Santos – pareceu bastante lógica, haja vista a dependência dos novos serviços em relação ao Aeroporto, das ambições turísticas e da maior valorização imobiliária da Orla Atlântica (ALMEIDA, 2008).

A partir de uma “coalizão de interesses” público-privados (POLUCHA, 2010), houve a maciça utilização do Transcon[3], sem o devido mapeamento e controle prévio das áreas, cujos direitos poderiam ser transferidos a particulares. A porcentagem desses empreendimentos, do total daqueles realizados na cidade, passou de 33,8% ao ano (1997), para 56,2% (2014), com um vertiginoso avanço sobre a altura dos edifícios da OA, especialmente em bairros como a Pituba e o Horto Florestal (CARVALHO; PEREIRA, 2014).

Acompanhando esse movimento, ocorreu a priorização da OA para empreendimentos turísticos, de infraestrutura (telecomunicações, iluminação, saneamento) e investimentos sociais (esporte, lazer, cultura), com “fortalezas de moradia”, hotéis, condomínios fechados, e mais shoppings centers, entre manchas de bairros populares (ALMEIDA, 2008). Assim, foram nos espaços de arquitetura superior da OA onde se concentraram os equipamentos público-privados de maior importância. Dessa forma, a maioria dos postos de trabalho da cidade também acabou se deslocando para a região. Em bairros como Pituba e Costa Azul, com índices de emprego, somados a Barra, Rio Vermelho, Boca do Rio, Patamares, Brotas e Itapuã, se concentravam, em 2010, 75,5% dos postos de trabalho de toda a cidade (CARVALHO; PEREIRA, 2014).


Ainda houve o Centro Administrativo da Bahia (CAB), concentrando nessa região a maior parte dos empregos da esfera pública estadual, além de um grande número de órgãos federais ao longo da Av. Paralela (BORGES; CARVALHO, 2014). No entanto, até o início dos anos 2000, a capital não conseguia ocupar 1/4 da sua População Economicamente Ativa – PEA (ALMEIDA, 2008), por alta qualificação exigida pelas vagas e menor habilitação dos trabalhadores.

As causas desse desemprego (e da ocupação informal precarizada) estão ligadas ao fato de que grande parte das vagas industriais (que exigem menor qualificação) teve lugar em outros municípios da Região Metropolitana, para os quais Salvador se tornou dormitório. Além disso, houve o desemprego daqueles despreparados para o setor terciário tecnológico (como no sistema bancário), além de uma suposta vocação soteropolitana para os serviços, onde a “indústria do carnaval” se constitui em exemplo de fonte de grandes lucros, subsidiados pelo Estado, com superexploração de trabalhadores subqualificados (PEDRÃO, 2009).

Rompendo a “continuidade” da “mancha de empregadores” na OA, encontram-se os bairros populares, como Nordeste de Amaralina, Vale das Pedrinhas, Chapada do Rio Vermelho, Santa Cruz e Engenho Velho da Federação (com densidades populacionais elevadas), além de Boca do Rio e Bairro da Paz (CARVALHO; PEREIRA, 2014). Esses territórios de urbanização popular resultaram, em sua maior parte, do esforço e do trabalho dos moradores, já que eram deficientes de políticas habitacionais para a população de menor renda, na cidade e no país como um todo (SERPA, 2007). Nesse sentido, 70% da população de Salvador vivia em ocupações informais, sendo que tais regiões correspondiam a 35% da área ocupada da cidade, geralmente em territórios de alta densidade (GORDILHO-SOUZA, 2008). Contudo, a OA nega essa lógica, pois apenas de 38% a 42% das pessoas viviam em ocupações regulares (CONDER, 2016).

Dessa maneira, os bairros populares formaram territórios de vulnerabilidade social, não somente por falta de infraestrutura e renda, mas, sobretudo, por exclusão de direitos urbanísticos. Embora “encravados” na OA, esses bairros não ficaram hermeticamente isolados do restante da cidade. Havia, nesses locais, um “circuito inferior de economia”[4], onde se mantinham interações comerciais entre pessoas de diferentes classes sociais e de territórios economicamente distintos, conforme sugeriu Santos (2007), o que podemos estender como interpretação válida também ao comércio ilegal de drogas.

Para pensarmos sobre essa forma diversificada de ocupação do solo, uma das tipologias mais abrangentes para Salvador foi aquela proposta por Gordilho-Souza (2008). Quanto aos modos de ocupação formal, se formaram: (i) as vilas habitacionais (ex.: Vila dos Sargentos - Itapuã); (ii) os loteamentos públicos (ex.: parte antiga da Boca do Rio); (iii) os conjuntos habitacionais (ex.: Marback - Boca do Rio) e; (iv) os loteamentos privados (ex.: Alphaville - Patamares). Quanto aos informais, se formaram: (i) as ocupações por “invasão” (ex.: Bairro da Paz); (ii) os parcelamentos informais (ex.: Nordeste de Amaralina) e; (iii) os parcelamento por arrendamento (ex.: Engenho Velho da Federação). Quanto à velha prática de morar em terrenos de terceiros (enfiteuse), essa foi criminalizada como um ato de usurpação, depois de 1968, tornando-se “invasão” (GORDILHO-SOUZA, 2008). No entanto, neste trabalho, preferimos usar a noção de “ocupações informais” ou o termo mais amplo de “bairro popular”.

De fato, as políticas de provisão de habitação social em Salvador não se anteciparam às ocupações informais e, pelo contrário, contribuíram para a intensificação do processo de segregação socioespacial (e racial, grifo nosso), até mesmo com tendência de verticalização da habitação informal (GORDILHO-SOUZA, 2008). No Mapa de ocupação e extensão do tecido urbano em Salvador (SEPLAM/PMS, 2006, apud CARVALHO-SOARES, 2009), com destaque para a delimitação da Orla Atlântica, mostramos a evolução da mancha urbana da cidade, desde as margens da Baía de Todos os Santos até o avanço sobre a Orla Atlântica, cujo processo acabamos de ver no texto.

Como região de ocupação relativamente recente da cidade, a OA registrou intensa presença de extensos condomínios residenciais, sobretudo construídos a partir dos anos 1980, onde o uso habitacional foi exclusivo, formando grandes barreiras ao longo da costa. São áreas de elevado valor da terra e consequente predomínio do transporte individual. Além disso, a região comporta o oitavo maior aeroporto do país em número de passageiros, Luís Eduardo Magalhães (antigo Dois de Julho), segundo o Diagnóstico da Mobilidade de Salvador (DMS), da Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana (SEMOB, 2017).

Em paralelo, os bairros populares de Salvador tenderam a manter sua heterogeneidade e menor integração social, comparados com aqueles bairros “tradicionais”, considerados mais homogêneos. Sugeriu-se que bairros populares, ou “enclaves”, em se tratando da OA, estariam em constante transformação, através de renovações das estruturas residenciais e da mobilidade espacial dos moradores (GUIMARÃES, 2015). Assim, esses bairros poderiam ser analisados pelo seu tempo de formação, dinâmica de crescimento e natureza dos grupos que os promoveram (BRANDÃO, 1978; CARVALHO-SOARES, 2009).

Os bairros populares, incrustrados entre territórios de maior renda da OA, representariam uma espécie de “segregação de microescala”, uma tensão pela proximidade entre grupos socialmente diferentes em situações convergentes (BRANDÃO, 1978; CARVALHO-SOARES, 2009). Essa formação passou por uma produção de espaço urbano resultante das mãos de vários agentes[5], como por exemplo, os movimentos populares que formaram o Bairro da Paz, as decisões administrativas que formaram o condomínio que daria origem à Boca do Rio, as remoções de famílias da orla de Ondina e Pituba também para a Boca do Rio, além de diversas outras decisões.


Nas esferas estadual e federal, houve ações relevantes na Orla Atlântica, devido a ser um eixo de expansão da cidade, que se configurou na direção do Litoral Norte, no processo de industrialização da capital (inclusive com a Petrobrás, maior estatal brasileira) e deslocamento das funções públicas do governo da Bahia para o CAB, como vimos. Além disso, em toda Região Metropolitana de Salvador, o grau de desequilíbrio econômico-social, ou seja, a distância entre o enriquecimento e o empobrecimento, foi maior do que em todas as outras RMs do país, devido a decisões políticas muito importantes, desde 1950 (SOUZA, 2004), dentre elas, a abertura do polo petroquímico. 

Enfim, todos os requisitos de um urbanismo do “capitalismo tardio e periférico” (de país em desenvolvimento) estiveram presentes na capital baiana. Tanto que, um dado se anunciava no período de euforia da industrialização (1970-1980): a crescente distância entre as pessoas de maior renda e aquelas de classe média. Isso culminou com o esvaziamento da “classe média” e o engrossamento da chamada “classe C”. Além disso, apareceram os “novos ricos”, dependentes dos fartos empregos públicos da capital (PEDRÃO, 2009). Desde 2014, crise econômica nacional e pauperização deram continuidade a esse processo, agravado pela ascensão da extrema-direita no Brasil (com medidas de austeridade social, descontrole inflacionário, perda de valor de compra etc.) em 2019, bem como pela pandemia de 2020.

SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL E RACIAL


Concentramos aqui um olhar, sobretudo, para a desigualdade, a vulnerabilidade e os riscos à violência urbana no bairro popular. Em suas reflexões no espaço urbano, esses fatores traduziram-se em segregação socioespacial e racial, um fenômeno que não é estanque, portanto, admitindo outras complexidades que exploramos neste fragmento.

Em primeiro lugar, os “bairros populares” são heterogêneos e não precários[6] como um todo. Então, não somente a renda, mas outros fatores o definem, como a tipologia espacial (média ou inferior), a presença de pessoas de menor renda e de pessoas de classe média, além de maioria de população negra[7], no caso de Salvador. Logo, segundo Clímaco Dias (2017), o bairro popular é um lugar com especificidades, onde a ideia de “pobreza” é apenas mais uma dimensão do território submetido à oferta de serviços públicos deficientes e à violência do tráfico de drogas e da polícia. Segundo Calazans e Neto (2017), a depender de como o bairro popular tenha se estruturado no tempo (ocupação nova ou antiga, mobilização por associação de moradores ou não) as localidades com maior densidade demográfica e menor renda, naturalmente, tendem a sofrer com maior abstenção do Estado, demonstrada na escassez de serviços básicos.

Os bairros populares, não somente os de Salvador, mas do Brasil como um todo, são formados por espaços urbanos com características socioespaciais e elementos raciais e econômicos bem definidos, compostos por segmentos das classes sociais mais vulnerabilizadas (CALAZANS; NETO, 2017). Nesse sentido, podemos dizer que a exclusão e a segregação social, em Salvador, é também racializada, engendrada, etarizada e espacializada, ou seja, com a “pobreza mais extrema” tendendo a ser de pessoas negras, femininas, jovens ou idosas, localizadas nos bairros populares (WARREN, 2004, apud CARVALHO-SOARES, 2009).

Esse conceito de “pobreza”, da confrontação entre a necessidade e a ausência financeira nas famílias (CAPUTO, 2004), se tornou fundamental para o estudo das desigualdades sociais, que têm como componente espacial, de acordo com esta pesquisa, o processo de segregação socioespacial e racial. Dessa forma, os autores costumam adotar uma “linha de pobreza”, geralmente considerada a “renda mínima necessária à família” (TORRES; MARQUES et al, 2003). Sobre essa linha, resgatamos as faixas de renda de “A” até “E” do IBGE (2010), onde esta última corresponde à menor renda média do responsável pelo domicílio. Portanto, nos bairros com renda “E”, para esta pesquisa, haveria maior condição de “pobreza” do que em outros bairros, embora o fator renda não seja o único a definir "pobreza".

Nesse quadro, a “pobreza” nunca foi um estado social natural, mas resultado de um processo histórico de exploração, expropriação, discriminação, não instituição de direitos e concentração de renda, riqueza, poder e informação (a desigualdade social). Hoje, exclusão e segregação, enquanto problemas atuais e urgentes, são agravados pelo processo de desregulamentação de mercados, precarização e flexibilização do trabalho, pela nova divisão social e internacional do emprego, entre outros processos que remeteram a uma composição social de grupos, classes, instituições, empresas e governos, que promoveram a desigualdade no sistema capitalista (CARVALHO-SOUSA, 2009).

Quanto ao conceito de segregação urbana, diz respeito à separação dos grupos sociais. Na academia, apareceu, pela primeira vez, nos trabalhos de Park, Burgess e McKenzie, a partir da análise da realidade de Chicago, nos EUA. Em texto publicado em 1925, com modelo de círculos concêntricos, Burgess destacou a existência de uma zona decadente que circularia a região central da cidade (VASCONCELOS, 2004). A chamada Escola de Chicago[8], como modelo clássico de análise da divisão social do espaço, estabeleceu que o valor do terreno corresponderia a uma hierarquia de ocupação, fazendo com que a estrutura espacial refletisse a divisão social (ou mais longe do centro, mais barato e “mais pobre”). Dessa maneira, a sociedade norte-americana imaginada por essa corrente somente sairia desse ciclo quando cada um tivesse a sua oportunidade em uma suposta mobilidade social, o que tornaria essa condição temporária, no entanto, negacionista dos processos de exclusão e segregação[9].

Quando trabalhamos a dimensão espacial da desigualdade socioeconômica no Brasil, como fez Zechin (2014), percebemos uma divisão física que designou a segregação socioespacial (e racial, grifo nosso). Em Brasília, Zechin (2014) apontou que as classes de menor renda moravam nas bordas da cidade, distantes daquelas de maior renda (no centro), o que o autor chamou de “exclusão”. Na maioria das cidades, no entanto, ele chamou de “segregação” quando, no estudo, as classes sociais estavam próximas ou se intercruzavam no espaço urbano. Em capitais como Salvador e Rio de Janeiro, vemos essa interconexão, ou seja, proximidade métrica entre classes de maior e de menor renda. Essa condição é devida à situação das cidades serem, muitas vezes, resultado de um movimento dos “mais pobres” em “ocupar terrenos centrais, posteriormente preteridos pelo capital imobiliário por se localizarem em locais de geografia particular, como fundos de vale, morros etc.” (ZECHIN, 2014, p. 183).

Dessa forma, segregação socioespacial e racial, traduzida em desigualdade social, vulnerabilidade e riscos diversos, de acordo com a nossa visão, formaram, o que chamou Ribeiro et al (2004), de um “sistema de ação” histórico da grande cidade brasileira, uma disputa de recursos urbanos. Segundo esses autores, as relações vinham abaladas desde o desenvolvimento capitalista brasileiro, baseado no modelo de industrialização por “substituição de importações”, que entrou em crise, aumentando a desigualdade e deixando vulnerável não somente a integridade física das pessoas, mas também as suas relações familiares e comunitárias.

Nesse sentido, ainda para Ribeiro et al (2004), “laços frágeis” com o mercado de trabalho brasileiro, quase sempre em crise, fragmentaram a constituição do domicílio, a convivência familiar e modificaram o contexto social de bairro. Além disso, tais fatores expuseram ao risco de violência urbana crianças e jovens (pelo desemprego e pela evasão e atraso escolar), manifestando crises sociais, dentre elas, o aumento da taxa de homicídios, principalmente, pela ocupação das “periferias” pelo tráfico de drogas (RIBEIRO et al, 2004) e pela repressão do Estado.

Tais fatores aconteceram, respectivamente, em paralelo aos ciclos da maconha, da cocaína, do crack e de seus genéricos baratos, a merla[10] e o oxi[11], sendo o narcotráfico, segundo Carvalho-Filho et al (2018), um fenômeno essencialmente urbano, das grandes cidades brasileiras que, a partir de 2015, passou a se interiorizar para as cidades menores, ainda em contexto de crise econômica brasileira, ocupando vazios deixados por instabilidades sociais.

Ainda que muitos reiterem que a criminalidade se torna genérica aos bairros populares, isso não explica, por si só, a violência urbana e o tráfico de drogas. No entanto, a desigualdade social, a vulnerabilidade e, sobretudo, os riscos a elas associado, contribuíam para tal, assim como para o alcoolismo, para a evasão escolar, para a prostituição e para outras complexidades que quebram a “cibernética social”, termo de Brandão (2007).


Constatou-se, ainda, nos bairros populares afetados, a ausência de meios institucionais de acesso à Justiça, bem como a presença, muitas vezes, opressiva da polícia. Assim reforçaram, Beato (2012) e França (2015), aspectos sociais gerais que contribuiriam para maiores riscos, com destaque para a desestruturação familiar, a gravidez precoce, a drogadição e o baixo grau de supervisão parental.

Para Adorno e Nery (2019), todo esse risco apresenta maior disposição para desfechos fatais em conflitos sociais, interpessoais e intersubjetivos. Além disso, segundo esses autores, territórios urbanos formados em diferentes períodos e diferentes processos de urbanização, são diversos e exibem diferentes estratos de risco para a mortalidade violenta.

Outro fator de risco, para Glebbeek e Koonings (2015), é a proliferação da vigilância e da injustiça nas “favelas”, onde os residentes sentem-se ignorados pelo Estado Legal. O linchamento como estratégia, muitas vezes premeditada, serviria para proteger bairros e comunidades, privatizando a Justiça e proliferando o uso ilegal de policiamento particular, a “justiça com as próprias mãos” ou o hobbesianismo social (OLIVEIRA, 2003).

Essa vasta parcela da população vulnerável socioeconomicamente, à margem, desenraizada dos processos essenciais da sociedade, desempregada ou com atividades precárias, convive com a constante desorganização familiar, o isolamento social e a delinquência juvenil (KOWARICK, 2009). Embora os processos de precarização e vulnerabilidade não estejam centrados no âmbito local (PRÉTECEILLE, 1998, apud KOWARICK, 2009), pois dependem também do cenário socioeconômico nacional, determinados grupos são mais vulneráveis à violência urbana do que outros, ao ponto que a vulnerabilidade socioeconômica aumenta o risco à criminalidade violenta (OLIVEIRA, 2003).

As oportunidades de renda e de boas condições de vida na cidade não foram igualitárias e a urbanização se afirmou através de novas formas de separação de classes, nas quais as relações entre capital e trabalho impediram a mobilidade social e a capacidade de se retirar para outros lugares melhores (PEDRÃO, 2009), de escapar dos lugares da vulnerabilidade e do risco. Assim, a segregação socioespacial (e racial, grifo nosso), quaisquer que sejam suas causas, é um agente negativo em relação à construção de uma sociedade justa e democrática, pois a falta de interação limita o diálogo e o reconhecimento do outro, sendo um forte fator de desintegração, polarização, exclusão e violência (FORNASIER, et al 2019).

Sobre as causas da segregação socioespacial e racial, tivemos que percorrer a literatura para estabelecermos uma linha de raciocínio, pois havia um amplo espectro de explicações para o fenômeno. No caso brasileiro, segundo Torres, Marques et al (2003), foram identificados até três diferentes grupos de causas para o padrão brasileiro de urbanização: (i) pelo mercado de trabalho e pela estrutura social – traço estrutural da economia capitalista dos países em desenvolvimento e desigualdade; (ii) pela dinâmica do mercado imobiliário e da produção de moradias – que promovem a segregação dos “mais pobres” por meio da competição pelo uso da terra; (iii) pelas políticas estatais – poder regulador do Estado sobre o território.


Dessa forma, o mercado imobiliário estaria estruturado em torno de ofertas de uso e locação do solo, e onde a maioria da população não poderia pagar para morar, tendendo a ser deslocada para lugares sem serviços públicos e com pouca renda diferencial. Nesse contexto, o Estado poderia incrementar tais processos, ou mesmo multiplicar a segregação e a produção de desigualdades e vulnerabilidades (TORRES; MARQUES et al, 2003).

O reflexo disso, no espaço urbano, foi uma segregação socioespacial e racial[12], com bairros populares sendo “enclaves”, no conceito de segregação de Guimarães (2015), na Orla Atlântica, por ter se apresentado ali uma lógica de ocupações irregulares em “ilhas”, em meio à expansão do mercado imobiliário de médio e alto padrão. No restante da cidade, a lógica é outra: os bairros populares são predominantes espacialmente. No entanto, a segregação socioespacial e racial não pode ser traduzida, simplesmente, como uma divisão territorial[13] entre “pobres e ricos” e “brancos e negros” (VILLAÇA, 2004), pois essas são raízes muito mais estruturais.

Como vimos, o fenômeno engloba a heterogeneidade também dentro dos bairros populares. Em Nordeste de Amaralina, Chapada do Rio Vermelho, Santa Cruz e Vale das Pedrinhas, por exemplo, que, embora constituam territórios onde as classes de menor renda tenham participação principal na sua formação, têm notada a presença de classe média (CARVALHO; PEREIRA, 2014)[14]. Para Carvalho e Pereira (2014), enquanto, no Bairro da Paz, mais da metade da população tem renda per capita familiar de até um salário mínimo, no citado Nordeste de Amaralina esse índice é inferior a 30%. Ademais, na Boca do Rio e em Itapuã, bairros com forte presença de territórios populares, foi observada, em nossa pesquisa, tal heterogeneidade, na presença de territórios de classe média e empreendimentos de alto padrão, sobretudo próximos à orla, contíguos àqueles populares.

No caso de Salvador, a segregação socioespacial teve como marco a separação por classes econômicas e fortes rebatimentos raciais. Embora a associação de bairros populares com a população negra não seja absoluta, nem mesmo a atribuição de territórios de maior renda com a população branca, podemos falar sobre uma predominância espacial de população de cor de pele branca em toda a OA. No entanto, essa lógica é invertida nos bairros populares, nos “enclaves”, onde a população predominante é negra, principalmente, na Chapada do Rio Vermelho (90%), no Bairro da Paz (89%), em Santa Cruz (88%), no Engenho Velho da Federação (87%), no Vale das Pedrinhas (85%), na Boca do Rio (81%), na Federação (80%) e em Itapuã (78%), como vemos no Mapa da distribuição espacial da população por raça em Salvador (PATADATA.ORG, 2015; IBGE, 2010).


A partir da análise de dados relacionados à cor da pele, disponibilizados pelo IBGE (2010), desvendou-se que as desigualdades raciais historicamente engendradas e inscritas no espaço da cidade apontaram para a discrepância entre pessoas negras e brancas em praticamente todos os indicadores estudados, na educação, na ocupação no mercado de trabalho, nas condições de moradia, no acesso aos bens de consumo duráveis e nos bens de consumo coletivo, inclusive os de responsabilidade pública, em Salvador, onde as pessoas negras sempre tiveram índices desfavoráveis, como já havia apontado Garcia (2006).

Além disso, no imaginário dos policiais (e do Estado, como um todo), os bairros populares são reconhecidos como “espaços do crime”, em uma busca por eliminar um problema que tornaria incompatível o convívio entre polícia e comunidade (LOPES, 2014). Essa gestão diferencial viria do tratamento negativo dado às minorias pela Justiça, pela polícia, por empregadores e pelo acesso às escolas, além de um estigma de pertença religiosa (quando se tratam de religiões de matriz africana no Brasil, grifo nosso), em um processo não apenas de exclusão e segregação, mas de ocultação, negação de direitos e discriminação (CASTEL, 2008).

Tal desintegração, portanto, faz com que a segregação socioespacial e racial se alimente de uma cidadania incompleta[15] (de direitos sociais, civis e políticos) dos moradores em vulnerabilidade. Consequentemente, a população em situação desfavorável acaba tendo menos acesso às “oportunidades econômico-culturais” (ROLNIK, 2008), por haver sua incorporação seletiva e desnaturalizada de suas raízes, ao sair do campo para a cidade, com a concentração de renda fora dessa população (SANTOS, 2007).

Nesse sentido, diferentes experiências de cidadania foram espacialmente postas em Salvador, quando não em outras nuances, em “campos de violência” e “blocos de privilégios de direitos”, acirrando experiências de desigualdade na cidade (IVO, 2019a). Essa proximidade espacial entre cidadanias diferentes criou barreiras físico-sociais, criminalização da “pobreza”, oposição aos direitos humanos e apoio à violência policial pelas classes média e alta (HOLSTON, 2013).

Para se protegerem da violência urbana, muitos moradores de bairros populares em todo o mundo passaram a se proteger com dispositivos de segurança (muros, grades etc.), por mais simples que fossem, mas dificilmente o faziam em ocupações precárias (BALLIF; ROSIÈRE, 2009). Nos anos 2000, por exemplo, em um bairro popular de Salvador, os moradores investiram na construção de muros e instalação de grades, pois dificultavam furtos, roubos e saída de jovens para a rua (CONCEIÇÃO, 2015), de certa forma “prevenindo” a sua vitimização violenta.


Outras “fortificações” puderam ser percebidas, ainda, em casas da “classe trabalhadora” dos bairros populares, onde também foram colocados portões e postos de controle para fechar ruas públicas (PLÄGER, 2006, apud GLEBBEEK; KOONINGS, 2015), como em alguns casos na Orla Atlântica, sob anuência da prefeitura de Salvador que, desde 2014, permite a instalação de guaritas e portões em ruas sem saída, mediante autorização municipal.

Outros graves problemas sociais gerados pela segregação socioespacial e racial, nesses bairros, ligam-se diretamente à “precarização do emprego” (RIBEIRO et al, 2004) para as pessoas de menor renda. Essa deficiência do mercado de trabalho e o enfraquecimento de instituições socializadoras (inclusive das associações de moradores), bem como a banalização da violência urbana, segundo Tavares dos Santos et al (2011), foram as causas para o enfraquecimento de “laços de solidariedade”, cidadania, direitos humanos e prevenção da violência estatal e social.

Chamamos de “laços de solidariedade” a inter-relação sinérgica entre os moradores da cidade, quebrada por desigualdade social, desemprego e vulnerabilidade, ainda mais trabalhando nas ruas (sobretudo jovens) e sob risco de violência urbana (do "crime organizado", de grupos de extermínio, da ação policial etc.) (RAMOS DE SOUZA, 1998). Em contrapartida, os “laços de solidariedade” poderiam ser reforçados em uma aposta pela não violência na resolução de conflitos (BUTLER, 2020b).

Cidades com baixa solidariedade, embora não sejam exclusivas do Brasil, são terreno fértil de violência urbana, pois a implosão do pacto citadino facilita a tomada de bairros populares pelo tráfico de drogas e os consequentes conflitos entre os seus operadores e a polícia. Segundo Burgos (2005), Ministério Público e Judiciário seriam a chave para essa integração social perdida, além de uma nova solidariedade surgindo do capital social de entidades religiosas, de universidades, de escolas e de instituições esportivas.

Enquanto isso, dentro do bairro, os jovens, mesmo quando apareceram em melhoria nos índices de educação, não foram significativamente absorvidos pelo mercado formal de trabalho, portanto, suscetíveis à criminalidade. O trabalho informal igualmente gera violências nos bairros (por disputas, distúrbios etc.), além de deixarem os pais longe de casa por mais tempo, afetando a relação afetiva com os jovens, o que seria um fator de proteção (CARDIA, 2004).


Devido à baixa remuneração, homens e mulheres trabalham longamente no sustento de suas famílias, com dificuldade de conseguir que algum adulto tome conta do jovem, dependendo dos “laços de solidariedade” ainda restantes entre vizinhos. Muitas vezes, só lhes resta a conversão evangélica, que se mostra como uma armadura conhecida e respeitada no “mundo do crime”, mas que não é mais o único caminho para a volta ao “mundo dos homens de bem” (CONCEIÇÃO, 2015). No entanto, uma conversão por medo da violência acaba diminuindo o senso de comunidade e aumenta o individualismo (CARDIA, 2004).


Enfim, de acordo com a nossa temporalidade, mesmo após a redemocratização do país nos anos 1980, passando pelo controle da inflação pelo Plano Real, nos anos 1990, o desemprego nunca deixou de ser um grave problema, aumentando a desigualdade, a vulnerabilidade e o risco à violência para as pessoas de menor renda das cidades brasileiras.


No período de governo federal petista, de 2002 a 2016, houve o incremento “desenvolvimentista social” à política “neoliberalista” do seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso (FHC), com a melhoria no parâmetro internacional que mede a miséria (índice de Gini). Dos pontos de vista econômico e social, o aumento do salário mínimo (acima da inflação) e a melhoria de vida, com acesso a bens de consumo, desde 2002, trouxe avanços econômicos até 2014.


No entanto, a crise política e o descontrole econômico, a partir de 2015, fez com que a renda média do brasileiro aumentasse menos do que o incremento do salário mínimo, devido à disparada da inflação. Segundo Cristaldo (2016), o desemprego, que chegava a 12% no fim do período FHC, despencou para 5%, em 2014, mas disparou para 11%, em 2016. Ainda hoje, com extrema-direita no governo federal (a partir de 2019) e cenário pandêmico (a partir de 2020), o índice de desemprego no Brasil resiste a diminuir, ficando a 11% em 2021, de acordo com o IBGE.


Os socioindicadores do IBGE que utilizamos foram obtidos em 2010, momento em que a educação ainda colhia índices tímidos de melhora, apesar do grande investimento nessa área pelo governo federal petista, do salário mínimo e da renda média em ascensão, ainda que continuasse a faltar 500 mil matrículas no ensino fundamental, principalmente aos mais vulneráveis (CRISTALDO, 2016).

Na legislação urbana, o Estatuto das Cidades criou os Planos Diretores em 2003, um avanço sobre a regulação do solo urbano com participação social. Em 2016, Michel Temer assumiu a presidência da República e foi seguido de um governo de extrema-direita, em 2019. Nesse momento, avançava a nossa estatística de violência letal e as cidades brasileiras viviam um aumento nos índices de homicídio, até 2017, mas com diminuição em 2018. Houve novo aumento durante o período pandêmico de 2020, com disputas entre facções do narcotráfico no Nordeste e ações policiais acontecendo em bairros populares, já abalados por grandes dificuldades devido às restrições de comércio formal e informal por causa do coronavírus.

NOTAS


[1] A nível nacional, desde 1850, a Lei de Terras decretou que nenhuma nova sesmaria poderia ser concedida a um proprietário de terras ou seria reconhecida a sua ocupação por meio da posse. As chamadas “terras devolutas”, que não tinham dono e não estavam sob os cuidados do Estado, poderiam ser obtidas somente por meio da compra junto ao governo, ou seja, uma forma de capitalização de terras (SOUSA, 2020). No entanto, em Salvador, até o fim dos anos 1960, funcionava o sistema de “enfiteuse”, ou seja, a permissão dada, a quem já era proprietário, de entregar a outrem todos os direitos sobre a terra (inclusive de alienar ou transmitir por herança), de tal forma que o terceiro que recebeu passasse a ter o domínio mediante pagamento de uma pensão eterna ao senhorio (FLÁVIO-GOMES, 2009). Então, em 1968, Salvador, reforçando o primeiro instituto (contra a posse) e acabando com o segundo (a favor da posse), voltou a sua atenção ao título de propriedade, em detrimento da ocupação.

[2] Esse sistema foi inspirado no plano do EPUCS (Escritório do Plano Urbanístico para a Cidade do Salvador) que pode ser considerado como a concretização das diretrizes expostas na Semana de Urbanismo, realizada em Salvador de 20 a 27 de fevereiro de 1935. Segundo NEVES (2003, apud CARVALHO-SANTOS; PINTO DE FREITAS; ANDRADE-SOUZA, 2010) das propostas indicadas na Semana de Urbanismo de 1935, destacaram-se as que sugeriram a construção de vias de tráfego do tipo trânsito rápido e arteriais.

[3] Transferência do Direito de Construir (Transcon) foi um instrumento emitido pelo Poder Público, dando poderes ao construtor e ou incorporador de construir acima dos parâmetros permitidos para determinados terrenos. O Transcon foi criado com o intuito dos municípios de resolver problemas de desapropriação de áreas particulares para criação de vias, praças e infraestrutura pública, sem a necessidade de usar dinheiro para indenizar os proprietários. Em Salvador, o instrumento foi emitido pela primeira vez no ano de 1987 (Fonte: www.transconsalvador.com.br. Acesso em: 20 jun. 2019).

[4] Circuito inferior: composto por atividades e serviços "não modernos", geralmente abastecidos pelo nível de venda e varejo, e pelo comércio em pequena escala, utilizando, para essa finalidade, o trabalho intensivo em lugar da tecnologia (SANTOS, 2007). Todavia, esse é um cenário em transição, vistos os aplicativos móveis que estão movimentando também o comércio dentro dos bairros, em pizzarias, pequenas lojas, mercados e até mesmo com algumas atividades de comércio ilegal.

[5] De acordo com o estudo de Vasconcelos (2004), os agentes ou atores urbanos podiam ser organizados por seis grupos, a saber: no "primeiro grupo", proprietários fundiários; no segundo grupo, Estado, governos, instituições públicas e políticos; no "terceiro", promotores imobiliários, construtores, incorporadores e financeiras; no "quarto grupo", habitantes, grupos sociais, associações, cooperativas e movimentos sociais; no "quinto grupo", especuladores, com destaque para o capital imobiliário; por fim, no "sexto grupo", a ênfase nos técnicos e especialistas em planejamento.

[6] Nosso conceito de bairro popular assemelhou-se ao de Zonas de Especiais de Interesse Social (ZEIS), criadas pelo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Salvador (PPDU, 2016). Destacou-se, além de uma predominância da precariedade na maioria das habitações, o grande adensamento de áreas antigas, como no Nordeste de Amaralina e Engenho Velho da Federação. Outra característica desses territórios foi a falta de renda substancial de seus habitantes, mas que ocorreu de maneira diversa entre as localidades (CARVALHO; PEREIRA, 2014), ou seja, mais um fator de heterogeneidade social. Para Torres, Marques et al (2003) tais espaços foram construídos geralmente em loteamento irregular e/ou em áreas de terceiros, apresentando a maioria das casas “autoconstruídas”, mesmo em porções muito pequenas de terra que ainda recentemente não eram ocupadas.

[7] Inclusive, no aspecto sociocultural, alguns bairros foram reconhecidos como “bairros negros”, por preservar as suas tradições e maioria étnica, como o Engenho Velho da Federação (RAMOS, Maria Estela Rocha. “Bairros negros”: Uma lacuna nos estudos urbanísticos – Um estudo empírico-conceitual no bairro do Engenho Velho da Federação, Salvador (Bahia). Tese (Doutorado), Versão Provisória - Universidade Federal da Bahia, Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Salvador, 2013, 283 f.).

[8] A partir de 1915, essa corrente iniciou um processo que abordou estudos em Antropologia Urbana, tendo no meio urbano seu foco de análise, desencadeando pesquisas relacionadas ao surgimento de ocupações de menor renda, à proliferação do crime e da violência, e ao aumento populacional, marcantes no início do século XX. Na Criminologia, essa escola instituiu a análise estatística, evidenciando a distribuição espacial do crime, relacionando-o, inclusive, com o meio físico, onde a estratégia de prevenção se tornaria mais eficaz do que a repressão (SHECARIA, 2004). Para Abreu (2013), na Escola de Chicago surgiram os primeiros estudos sobre a Teoria da Ecologia Criminal, ou teoria ecológica, segundo a qual a criminalidade não era determinada pelos indivíduos em si, mas pelo grupo, e isso passava a considerar os fenômenos sociológicos para explicar o crime.

[9] Para melhor explicar o conceito de “exclusão”, tomamos emprestado o estudo da Educação. Dessa forma, o termo “exclusão” significa o total abandono, enquanto o estágio posterior, a “segregação”, é a convivência lado a lado, mas guardada a separação física (EMYGDIO DA SILVA, 2009).

[10] Para se fazer a “merla” (mela, mel ou melado), alcalinos e solventes baratos e de fácil obtenção foram adicionados à pasta de cocaína; a droga assumiu a consistência pastosa, com odor forte e coloração amarela/marrom; diferentemente do “oxi”, espalhado pelo território nacional, a merla se concentrou nas regiões central e norte do país; essa pasta pôde ser misturada ao cigarro ou fumada em cachimbos de crack. Os efeitos foram semelhantes. (Fonte: Jornal Em Discussão, do Senado Federal. Disponível em: <https://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/dependencia-quimica/crack-chama-a-atencao-para-dependencia-quimica/merla-se-popularizou-no-centro-e-no-norte-do-brasil.aspx>. Acesso em 3 ago. 2020).

[11] O “Óxido” ou “oxi” foi o entorpecente obtido da mistura da pasta de cocaína com querosene, gasolina, cal virgem ou solvente de construção; a droga era uma pedra, geralmente consumida com cigarro ou em cachimbos, como o crack e a merla. O nome “oxi” veio do fato da droga liberar uma fumaça escura, deixando um resíduo marrom, semelhante à ferrugem; como os produtos utilizados foram o querosene e a cal, essa droga acabava sendo bem mais tóxica do que o próprio crack; o comércio de uma droga desse tipo era bastante vantajoso ao fornecedor, que logo transformava mais usuários em dependentes, além do que o oxi tinha preço dois a cinco vezes menor do que o do crack; estimava-se que os usuários de crack vivessem pelo menos 5 a 6 anos, mas 30% dos usuários de oxi poderiam estar mortos depois de um ano (Fonte: COSTA-BBC, Camilla. Entenda o que é o oxi e como a droga se espalhou pelo Brasil. Disponível em: <http://www.diariodasaude.com.br/news.php?article=drogas-o-que-e-oxi>. Acesso em: 3 ago. 2020).

[12] Para Campos (2006), as pessoas que sofriam os estigmas da segregação, em proporções semelhantes, sofriam também outras discriminações, sejam de ordem étnico-racial, regional ou religiosa, o que poderia explicar, por exemplo, crimes de intolerância religiosa. Mas não somente isso, pois o fator racial estava ligado a praticamente todos os baixos indicadores sociais das pessoas negras e dos bairros populares onde moravam.

[13] Como vimos, o domínio do tráfico de drogas, de milícias e o cerco policial em alguns bairros populares pode também limitar certos movimentos de seus moradores para fora de seus limites, outra espécie de segregação "pelo crime".

[14] Embora apontem a presença de classe média nesses bairros de menor renda, Carvalho e Pereira (2014) tiveram como metodologia a construção de mapas com grandes manchas sobre a cidade, muitas vezes, englobando regiões extensas, não sendo possível, portanto, observar essa heterogeneidade em imagens das obras desses autores.

[15] Para “cidadania incompleta”, consultar Murilo de Carvalho (2002).

Foto Segregação Osmar Gama 2019_edited.jpg

VIOLÊNCIA LETAL NA ORLA ATLÂNTICA
EM MACROESCALA

DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL DA VIOLÊNCIA LETAL


Com a Tabela de Síntese dos Tipos de Violência Letal, organizamos os dados de violência letal (VL) e suas porcentagens por bairros na Orla Atlântica e para o município de Salvador. Com 1.688 homicídios dolosos praticados por civis (HDPC) apurados na SSP/BA, ao longo de 18 meses, o município teve ainda 428 mortes praticadas por policiais (MPP) (DATASUS, 2020). Somados para Salvador, apuramos 2.161 VLs.

Quando comparamos esses dados à Orla Atlântica, vimos que a região contribuía com 9,2% de todas as VLs da capital, portanto, configurando uma região “menos violenta” da cidade, já que as porcentagens das outras eram maiores.

Fizemos também um estudo de taxas por 100 mil hab. ao ano, bastante utilizado para regiões maiores do que bairros. Dessa forma, Salvador teve números geralmente maiores dos que os da Orla Atlântica. Enquanto isso, essa região teve taxas menores, com menos da metade dos índices da capital.

Sobre a incidência dos tipos de VL, destacaram-se o HDPC (78% das VLs em Salvador e 71% na Orla Atlântica) e MPP (20% em Salvador e 24% na Orla Atlântica) sendo, portanto, esses dois, os focos de nossa discussão.

Pudemos notar os bairros mais acometidos por cada um dos dois tipos principais de VL. Por HDPC, Boca do Rio (21,8%), Itapuã (19,7%) e Chapada do Rio Vermelho (9,2%) destacaram-se por concentrar tais mortes na Orla Atlântica. Por MPP, Santa Cruz (31,9%) foi demasiadamente maior, seguido por Itapuã (8,1%). Como tendência, os dados mostraram alto desvio padrão, ou seja, muita discrepância, criando uma concentração de HDPC em apenas dois bairros populares: Boca do Rio e Itapuã, bem como para MPP em Santa Cruz, outro bairro popular.


Enquanto isso, houve bairros populares com baixos índices de VL, de acordo com a quantidade de habitantes, como Bairro da Paz, Alto do Coqueirinho, Nordeste de Amaralina, Vale das Pedrinhas, Calabar e Alto das Pombas.

Nos bairros atingidos, os tipos de violência variavam. Em Itapuã, 80% do total de ocorrências foram HDPC e 11,4% de MPP. Na Boca do Rio, 91,2% foram HDPC e 8,8% de MPP. Em Santa Cruz, a lógica se inverteu, com 75% de MPP e 25% de HDPC, mostrando uma forte relação entre letalidade e a presença de operações policiais no bairro.

Portanto, a fim de interrogar esses dados estatísticos e para a sua melhor visualização, espacializamos a tabela citada acima, gerando alguns mapas que apresentaremos a seguir. No Mapa de porcentagem de violência letal na Orla Atlântica por bairro, mostramos a concentração de VLs mapeadas de 1 nov. 2018 a 30 abr. 2020, onde se podem observar os bairros com maior e menor incidência. Vimos que a Orla Atlântica continha áreas com maiores concentrações de agentes da violência, mesmo não sendo a região “mais violenta” da cidade, contendo, basicamente quatro conjuntos de bairros “problemáticos” do ponto de vista das VLs: (i) Federação/Engenho Velho da Federação; (ii) Santa Cruz/Chapada do Rio Vermelho; (iii) Boca do Rio/Pituaçu e; (iv) Itapuã.

Tais conjuntos, constituídos por bairros espacialmente contíguos, concentraram 69% das VLs da Orla. Pudemos observar que dois grupos concentraram praticamente 40% de todas as ocorrências na OA (Itapuã e Boca do Rio/Pituaçu), e os outros dois ficaram, respectivamente, com 18% (Santa Cruz/Chapada do Rio Vermelho) e 11% (Federação/Engenho Velho da Federação) das VLs da Orla. Os outros bairros apresentaram até 4% das VLs da OA cada, exceto, Vitória e Itaigara, com 0%.


Essa heterogeneidade expressou a ausência de um Política Pública de Segurança em escala regional, existindo um elevado desvio padrão entre os indicadores dos bairros, denotando haver estratégias de políticas públicas bastante diferenciadas para cada grupo.


No Mapa de porcentagem de homicídios dolosos praticados por civis (HDPC) por bairro na Orla Atlântica, podemos observar que praticamente 40% de todas as ocorrências estão na Boca do Rio e em Itapuã. Bairros populares como Calabar, Alto das Pombas e Vale das Pedrinhas não apresentam nenhuma ocorrência de HDPC (os três menores territórios em branco no mapa), enquanto outros vinte e dois bairros apresentam até 10% dos HDPC na OA, cada, sobretudo, Chapada do Rio Vermelho (9,2%). Como há uma predominância da faixa entre 0-10%, pode-se observar maior homogeneidade dos HDPC com relação ao mapa anterior de todas as VLs.


No Mapa de porcentagem de mortes provocadas por policiais (MPP) e bases da PM por bairro na Orla Atlântica, podemos observar que as MPP (dentro e fora de serviço dos policiais) se restringem a menos bairros do que os HDPC, tendo a maior concentração em Santa Cruz, bairro com uma Base Comunitária de Segurança (BCP) da Polícia Militar e com mais de 20% de todas as MPP da OA.


Dois bairros lindeiros também têm grandes porcentagens (Chapada do Rio Vermelho e Nordeste de Amaralina), ambos igualmente com uma BCS, uma em cada, além do Engenho Velho da Federação e Itapuã (5-10% das MPP cada), bairros estes sem BCS.

Outros dois grupos de bairros respondem com 3-5% das MPP, cada: ao sul, Calabar, Alto das Pombas, Federação, Rio Vermelho e Vale das Pedrinhas. No centro, Imbuí, Boca do Rio, Pituaçu e Patamares. De modo espacial, se formam três grupos de bairros com MPP na OA, de modo a entender que haja uma Política Pública de Segurança “diferenciada” entre eles: uma ao redor do Rio Vermelho (sul), região das 40ª e 41ª Companhias Independentes da Polícia Militar (CIPM), além de outra ao redor da Boca do Rio (centro), região da 39ª CIPM e, a última, no bairro de Itapuã (norte), na 15ª CIPM. Como descrito na sugestão de microescala dos bairros, essas MPP tiveram naturezas de execução distintas, de acordo com o local onde aconteciam e suas características socioambientais.


ESPACIALIDADE DA VIOLÊNCIA LETAL CONFORME DENSIDADE E RENDA


Para uma melhor compreensão do fenômeno da VL, de acordo com possíveis ligações com índices socioeconômicos, relacionamos o Mapa de densidade demográfica e ocorrências de VL na Orla Atlântica de Salvador, evidenciando a concentração de violências letais em bairros populares densos, como Engenho Velho da Federação, Santa Cruz e Boca do Rio, porém o mesmo não ocorre em outros bairros populares igualmente densos, como Calabar e Alto do Coqueirinho.

Alguns bairros de densidade média/alta apresentam concentrações de VL, como Chapada do Rio Vermelho, Nordeste de Amaralina, Bairro da Paz e Imbuí, neste último, apenas em seus territórios populares. Alguns com densidade média, como Federação e, principalmente, Itapuã (ainda que saturadas ao longo da Av. Dorival Caymmi), apresentam concentrações importantes de VL. Dois bairros de densidade média/baixa têm concentrações de VL, como Pituaçu e Piatã, a saber que suas machas urbanas são concentradas na orla, mas com área de bairro extensa, diminuindo a sua densidade. Isso mostrou que a OA seguiu a lógica que vimos em Salvador, onde as áreas de alta densidade não eram absolutamente propícias à VL, mas que a maioria dessas áreas densas tinha violências letais.

No Mapa de porcentagem de renda de até 1 SM do chefe de domicílio e ocorrências de VL na OA de Salvador, mostramos que pode haver ou não a concentração de violência letal em bairros com maior porcentagem de chefes de domicílio com renda de até 50% da classe E do IBGE (dois salários mínimos = R$ 1.870,00), que corresponde a até R$ 935,00 mensais. Essa é uma realidade de “pobreza” para mais da metade da população da Chapada do Rio Vermelho, de Santa Cruz, do Calabar e do Bairro da Paz. No entanto, verifica-se menos VLs nos dois últimos bairros.

Outras concentrações de VL aparecem em bairros nas faixas de 35% a 46% de renda de até 1 SM do chefe de domicílio, como Alto das Pombas, Engenho Velho da Federação, Nordeste de Amaralina e Vale das Pedrinhas, o que não acontece no Alto do Coqueirinho. No entanto, há bairros com 15% a 35% de chefes de domicílio que recebem até 1 SM apresentando consideráveis concentrações de VL, como Federação, Boca do Rio, Pituaçu e principalmente Itapuã.

Isso mostra, assim como na densidade, que a OA seguiu a lógica de áreas de concentração de “pobreza” não serem absolutamente propícias à VL, ao tempo em que, na sua maioria, apresentam alta incidência de ocorrências de violências letal, precisando-se investigar que diferenças havia entre bairros “igualmente populares”, mas diferentes com relação à VL.

No Mapa de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) e ocorrências de VL na OA de Salvador, evidenciamos a maioria das concentrações de violência letal sobre as ZEIS. De acordo com a Lei nº 9.069/2016, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano do Município de Salvador (PDDU), as ZEIS “são destinadas à implementação de programas de regularização fundiária e urbanística, produção, manutenção ou qualificação de Habitação de Interesse Social (HIS) e Habitação de Mercado Popular (HMP)” (SALVADOR, 2016, p. 218). Segundo o Plano Diretor, são 234 ZEIS no município, incluindo as suas ilhas, não coincidentes com as divisas de bairros, ora menores, ora maiores do que bairros inteiros. Além disso, as ZEIS são um instrumento público estabelecido em regiões pretendidas pelo mercado imobiliário, a fim de prevenir remoções que possam surgir do avanço de grandes edifícios sobre essas áreas.

A relação entre VLs e ZEIS mostra a forte ligação entre territórios em vulnerabilidade social (fundiária, urbanística, habitacional e financeira) com a concentração de agentes da violência letal (tráfico de drogas, polícia, conflitos interpessoais etc.), menor renda da população e alta densidade, embora novamente se observe que há ZEIS que não apresentam ocorrências de VL. Dentre aquelas que apresentam, estão as que ficam dentro dos bairros Calabar, Federação, Engenho Velho da Federação, Ondina, Nordeste de Amaralina, Boca do Rio, Pituaçu, Bairro da Paz e Itapuã. Dentre as ZEIS que não apresentaram VL, estão aquelas pequenas em área e dentro de bairros de classe média, como Vila Brandão (Vitória), Morro do Gavaza (Barra), Pedra da Sereia (Rio Vermelho), Vila das Pedrinhas (Imbuí) e, das maiores em área, todas aquelas dentro do bairro popular do Alto do Coqueirinho. Em microescala, sugerimos estudar melhor essa relação entre ocorrências de VL e ZEIS.

DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL DAS CIRCUNSTÂNCIAS DE VIOLÊNCIA LETAL


Apontadas as relações e nuances entre variáveis sociodemográficas e VL, seguimos com a distribuição espacial de circunstâncias de ocorrências de violência letal, ou seja, dos principais motivos que levaram aos crimes, de acordo com cada bairro.


Na Tabela de violência letal segundo as suas circunstâncias, por bairro na OA, vimos que Salvador tem 428 mortes provocadas por policiais (MPP), segundo o DataSUS (2020), ao longo de 18 meses. Ademais, são 1.350 homicídios dolosos provocados por civis (HDPC), supostamente causados pelo tráfico de drogas. Somados para Salvador, apuramos 2.161 VLs em 18 meses. Quando comparamos esses dados apenas à Orla Atlântica, vemos que a OA contribuía com: 11% das MPP e 1,1% dos HDPC de “suposto tráfico de drogas” (grifo nosso) de Salvador, portanto, a região que menos concentra agentes da violência na cidade.

Com relação à porcentagem de HDPC de “suposto tráfico de drogas” (grifo nosso), é sabido que a contagem poderia ser maior, porque as mortes causadas por “grupo desconhecido” e “não identificado” poderiam ter como circunstância o narcotráfico, mas que não foram assim reconhecidas por falta de evidências. Para uma compreensão melhor da tabela acima, precisamos saber que as circunstâncias “grupo desconhecido”, “vias de fato (briga)” e “não identificado” só foram estudadas na OA, por isso não encontram correspondência em Salvador.

Quanto às taxas por 100 mil hab. (ao ano), Salvador tem índices geralmente maiores: 10,66 (MPP) e 53,84 (para todas as VLs.) Não fizemos médias para “suposto tráfico e drogas” e “feminicídio”, por não termos números precisos para Salvador, bem como “grupo desconhecido”, “vias de fato (briga)” e “não identificado”, que foram estudados apenas na OA.


Nas circunstâncias que puderam ser comparadas, a Orla Atlântica tem índices menores de MPP (5,38) e de VLs (22,82), com quase metade do índice da capital, exceto para o latrocínio, cujas médias de Salvador e OA são próximas. Sobre a incidência das circunstâncias na OA, destacam-se “não identificado” (34,2%), “grupo desconhecido” (25,6%), MPP (23,6%) e “suposto tráfico de drogas” (7,5%).

Podemos notar os bairros mais acometidos por cada uma das principais circunstâncias. Por “grupo desconhecido”, Boca do Rio (25,5%), Itapuã (13,7%), Chapada do Rio Vermelho e Federação (ambos com 9,8%). Por MPP, Santa Cruz (31,9%), demasiadamente, seguido de Itapuã (8,5%). Por “suposto tráfico de drogas”, Boca do Rio (33,3%), Engenho Velho da Federação e Nordeste de Amaralina (ambos com 13,3%).


A alta ocorrência coincidindo na Boca do Rio demonstra a ação de grupos de extermínio agindo concomitantemente às supostas ações letais do tráfico de drogas.

Dentro desses bairros, é observado que as porcentagens de circunstâncias variam. Em Itapuã, 20% foram por “grupo desconhecido”, 11,4% MPP e 2,9% “suposto tráfico de drogas”. Já na Boca do Rio, 38,2% foram “grupo desconhecido”, 14,7% “suposto tráfico de drogas” e 8,8% MPP. Em Santa Cruz, a lógica se inverteu, com 75% MPP, 10% “grupos desconhecidos” e nenhum “suposto tráfico de drogas”, mostrando uma forte relação das VLs com agentes públicos armados dentro do bairro.

Os dados intrabairro sugerem a necessidade de uma investigação em microescala, sobre a diferença dos agentes da violência, e em quantidade, que estão atuando em cada bairro popular. Na Boca do Rio, por exemplo, há indícios de uma violência letal urbana indistinta, a qual pode estar baseada em extermínios, tanto da parte do narcotráfico quanto de outros grupos.


Em Santa Cruz, no entanto, há um claro envolvimento dos policiais na grande maioria das violências letais (mortes provocadas por policiais – MPP), na maior parte das vezes em serviço, de forma que essas motivações precisam também ser investigadas. Embora os espaços urbanos da Boca do Rio e de Santa Cruz se assemelhem, com loteamentos irregulares e ocupações por terceiros, os agentes da violência letal parecem diferir bastante em sua composição e motivação.

Portanto, a fim de interrogar esses dados estatísticos e para melhor visualização, espacializamos a tabela acima, gerando o Mapa de porcentagem de homicídios dolosos por “grupo desconhecido” por bairro na OA de Salvador. Observamos que o bairro que mais concentra agentes de tal circunstância, quando não é possível determinar se a autoria se deu pela polícia, pelo tráfico de drogas ou por grupo alheio, mas se cumpre uma “execução”, foi a Boca do Rio, com 21%.

No Mapa de porcentagem de homicídios dolosos por “suposto tráfico de drogas” por bairro, notamos uma concentração em dois bairros: Boca do Rio (com mais de 30% das ocorrências) e Engenho Velho da Federação (13%).

Uma primeira hipótese seria a da “guerra do tráfico”, na qual esses dois bairros estariam inseridos, com três ou mais facções disputando o mercado de entorpecentes dentro de cada um, como vimos no Mapa de disputas de facções em Salvador (2020). Outros bairros apresentam pelo menos uma VL de circunstância “suposto tráfico de drogas”, mostrando que essa disputa não se contém apenas no limite dos bairros populares.


Levando em conta os bairros onde houve alta concentração de uma ou mais circunstâncias apontadas, podemos estar observando a presença de uma “sociabilidade violenta”, termo de Machado da Silva (2004, 2010)[1], nesses territórios, marcados por uma diversidade de agentes da violência urbana agindo no cotidiano dos moradores e com diferentes motivações. Assim, outros aspectos das ocorrências de VL, como horário, sexo das vítimas e faixa, puderam nos auxiliar na sugestão de uma análise intrabairro.


VIOLÊNCIAS LETAIS POR ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DAS VÍTIMAS


Pudemos observar a prevalência de violências letais à noite (das 18:00 às 6:00). Houve exceções, como no Engenho Velho da Federação, onde a maioria das VLs ocorre durante o dia.

Quando separamos, das violências letais, os homicídios dolosos praticados por civis (HDPC), percebemos a prevalência duas vezes mais à noite do que de dia (exceto no Engenho Velho da Federação, onde os tiroteios e mortes estão ocorrendo em todos os turnos e vitimando mais durante o dia).

Para as mortes provocadas por policiais (MPP), há também prevalência à noite, no entanto, com pouca diferença em relação à quantidade diurna. Nos bairros com maior número de MPP, como Santa Cruz, Itapuã e Boca do Rio, a prevalência dessa circunstância é nitidamente diurna, mostrando que pode haver mais operações policiais, ou que essas são mais letais, quando ocorrem durante o dia. Isso significa um cotidiano mais conflagrado para os moradores, que mesmo durante o dia se vêem à volta de tiroteios. Outras circunstâncias não foram abordadas por não apresentarem ocorrências suficientes para o estudo.


Quanto às vítimas de VL por faixa etária, por bairro da OA de Salvador, observamos que, devido às falhas no preenchimento dos Boletins de Ocorrência (BOs), há 30% de faixas etárias “não informadas”, com maiores incidências de subnotificação nos bairros de Itapuã, Boca do Rio, Santa Cruz, Chapada do Rio Vermelho, Nordeste de Amaralina, Engenho Velho da Federação, Imbuí e Vale das Pedrinhas. Além disso, a faixa de 15 a 29 anos, como no contexto nacional de violência letal urbana, tem a maior incidência de VL na maioria dos bairros. Dos bairros com mais de cinco ocorrências, as exceções quanto à faixa etária predominante foram o Bairro da Paz e a Chapada do Rio Vermelho, onde a maioria é de 30 a 49 anos, e o Engenho Velho da Federação, com maioria de 50 a 69 anos.

Esses números que incidem, sobretudo, sobre uma população de 15 a 49 anos, mostraram a perda importante de População Economicamente Ativa (PEA), ou seja, de pessoas que estavam inseridas ou procurando se inserir no mercado de trabalho. Esse importante efeito atinge a PEA de Salvador que, historicamente, sempre teve dificuldade de ser absorvida pelo mercado formal, como apontou Almeida (2008), a respeito do desemprego.


Além disso, essa perda se faz ainda mais dramática para jovens de até 29 anos, incluindo adolescentes, que sequer iniciaram a entrada no mercado de trabalho. Ademais, a perda de população de 30 anos ou mais certamente contribui para tirar da sociedade muitos provedores familiares, deixando, sobretudo, crianças e jovens sob mais risco emocional, econômico e social.

Em Itapuã e Engenho Velho da Federação, com perda de pessoas de 50 a 69 anos, conseguimos verificar, a partir da imprensa, que elas não estariam envolvidas com a criminalidade, mas vítimas da “sociabilidade violenta” instaurada nesses bairros, igualmente, com graves impactos econômico-sociais e psicológicos para essas famílias.


Com relação ao preenchimento dos Boletins de Ocorrência (BO's), o bairro de Itapuã continua com grande incidência de faixa etária “não informada”, mostrando uma falha que, certamente, traz grandes prejuízos para o inquérito policial e para o processo judicial. A faixa etária de 15 a 29 anos continua sendo a mais atingida por homicídios dolosos praticados por civis (HDPC) na maioria dos bairros, sobretudo na Boca do Rio, onde há o maior risco de violência letal para jovens, por ser um local em disputa por, no mínimo, três facções.


Quanto às mortes provocadas por policiais (MPP)[2], as relacionamos à faixa etária das vítimas. A subnotificação das idades aumentou para 41%, em vista das VLs como um todo (34%), sendo Santa Cruz com maiores números em MPP e subnotificações. Isso evidencia uma Política Pública de Segurança direcionada para o confronto, com faixa etária de 15 a 29 anos como a mais atingida, não somente em Santa Cruz, mas na maioria dos bairros populares.


Outra característica é a maior presença de MPP nos bairros do sul da Orla Atlântica: Calabar, Engenho Velho da Federação, Rio Vermelho, Santa Cruz e Nordeste de Amaralina, dando a entender que haja uma gestão diferenciada de segurança nas unidades da PM/BA que cobrem essa região: a 40ª Companhia Independente de Polícia Militar (CIPM responsável pela região do Nordeste de Amaralina), a 41ª CIPM (responsável por Calabar e Engenho Velho da Federação) e a 12ª CIPM (Responsável pelo Rio Vermelho), bem como nas operações policiais que reúnem agentes de outras unidades para atuarem, principalmente, no Engenho Velho da Federação, Santa Cruz e Nordeste de Amaralina.


Embora o sul da OA tenha mais bairros atingidos, outros ao norte são significativos em MPP, com destaque para Itapuã, Jardim Armação e Boca do Rio. Questiona-se, assim também, a atuação da 39ª e da 15ª CIPMs (Boca do Rio e Itapuã, respectivamente), como origem dos policiais que patrulham a região.


À propósito do sexo biológico da vítima, por bairro da OA de Salvador, observamos a maior incidência nítida de vítima do sexo masculino (88%). No entanto, há bairros onde o número de vítimas do sexo feminino é expressivo, como em Itapuã (onde dos seis homicídios, dois são feminicídios[3]), na Boca do Rio (dos três homicídios de mulheres, um é feminicídio) e na Chapada do Rio Vermelho (dos quatro homicídios de mulheres, dois são feminicídios).


Essa situação confere à vítima masculina maior risco de ser autor ou de sofrer VL, sobretudo ao jovem negro de bairro popular. Além disso, pode-se pensar no possível impacto econômico sobre a estrutura familiar, com a perda da renda masculina que, pela desigualdade estrutural brasileira relativa ao gênero, costuma ser ainda maior do que a feminina. Da mesma forma, o homicídio de vítima feminina, nesta pesquisa, sobretudo em Itapuã e, principalmente, aquelas referentes a feminicídio (nove casos ao todo na Orla Atlântica), indica possíveis violências domésticas acontecendo em ambientes de sociabilidade fraturada.

Na sequência, a segunda causa da vitimização feminina foi por “grupo desconhecido”, ou extermínio (sete casos), principalmente em Itapuã e Chapada do Rio Vermelho, os dois bairros “mais violentos” para as mulheres. São justamente bairros de disputas entre facções e violência policial onde, nesses casos de extermínio, a mulher pode estar envolvida no tráfico de drogas, seja com a comercialização direta ou para encobertar um companheiro, como relata Conceição (2015).


Poderia ainda ter sido “julgada” por um “tribunal do crime”, ou até mesmo vítima de policias, cuja autoria não pôde ser confirmada. São hipóteses que a nossa pesquisa nos BOs e na imprensa local também não puderam responder, por insuficiência de dados.

Ademais, quatro mulheres na OA morreram por VL “não identificada”, seguidas de duas vítimas femininas por “suposto tráfico de drogas” (cujas hipóteses sobre o seu envolvimento com o narcotráfico acabamos de citar), ocorridas todas em bairro popular, e dois latrocínios de mulheres (roubos seguidos de morte), em bairro de renda média.

Analisando aspectos das ocorrências de VL, como horário, sexo da vítima e sua faixa etária, podemos observar que há duas nuances desses fenômenos ocorridos nos bairros. A primeira, é compartilhar características de reflexos nacionais (como a VL mais incidente em jovens masculinos, diuturnamente, a violência do tráfico de drogas, o extermínio por “grupos desconhecidos” e a violência doméstica). A segunda nuance são as dinâmicas locais, a exemplo das brigas interfamiliares, “balas perdidas” e eventos diversos de violência que ajudam a compor uma “sociabilidade violenta” em alguns bairros.


NOTAS

[1] Machado da Silva (2004, 2010) estudou a violência urbana em geral, e não somente a violência letal urbana, com foco no cotidiano dos moradores em relação aos agentes da violência.

[2] Dentro e fora de serviço.

[3] Assassinato de mulher, por razão do gênero feminino, geralmente associado à violência doméstica.

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