SUGESTÕES DE MICROESCALA NA ORLA ATLÂNTICA: O QUE ENCONTRAMOS ENQUANTO DISCUSSÕES?
1. RELAÇÃO NÃO ABSOLUTA ENTRE "POBREZA" E VIOLÊNCIA LETAL
Manifestamos seis ideias-força para balizar a discussão sobre as disparidades apontadas na pesquisa, isto é, (i) relação não absoluta entre “pobreza” e violência letal; (ii) sociabilidade violenta não sendo apenas associada à morte; (iii) violência letal urbana como objeto de estudo; (iv) relação entre tráfico de drogas e Segurança Pública; (v) segregação socioespacial e racial; (vi) juventude e desemprego.
Buscamos fazer a união da teoria dos autores com o empírico por nós trazido neste trabalho, tanto ao falar da literatura que, de alguma forma, explicou os fenômenos ocorridos, quanto daquela bibliografia que não se mostrou coerente para Salvador. Além disso, citamos os bairros populares onde se deram esses efeitos com maior intensidade, pois só a microescala pode revelar melhor os eventos de violência do que o refino estatístico.
“Pobreza e violência letal”, nossa primeira ideia-força, não se mostrou uma relação direta (OLIVEIRA, 2003; NERY; MONTEIRO, 2006; GLEBBEEK; KOONINGS, 2015), mesmo nas análises de territórios onde havia mais chefes de domicílio que recebiam até 1 salário-mínimo mensal. No Calabar (e no vizinho de Alto das Pombas), por exemplo, bairro popular com baixos índices de VL, “a estabilidade das redes sociais, aliada a uma forte vida associativa, atenuou os efeitos negativos da pobreza e do crime” (TREUKE, 2019, p. 133, tradução livre), ainda que os empregos fossem, em sua maioria, informais, e nos arredores abastados do bairro, com “evitação social” entre contratantes e contratados.
No Bairro da Paz, outro bairro popular com baixos níveis de VL, a aposta nas parcerias para as iniciativas sociais pode ter sido o grande alicerce que sustentou o menor número de VLs, por meio de convênios com empresas privadas, ONGs e voluntariados, além de um Conselho de Moradores (CM) centralizado e representativo (CORREIA; LAJE, 2005), fenômeno que merece maior atenção para estudos futuros. Em ambos os bairros, embora monopolizados por uma facção do tráfico de drogas, o que causava menos conflito, havia Bases Comunitárias de Segurança (BCSs) e uma espécie de “paz armada”, termo descrito por Machado da Silva (2004), entre moradores, narcotráfico e polícia.
Já no Alto do Coqueirinho, também sob essa mesma “paz”, não havia BCS, o que atenuava a presença policial no bairro e nos levou a refletir se o CM e a sua atenção ao jovem, e não somente a BCS e suas iniciativas sociais, poderiam ser a questão sem a qual não haveria redução de violência urbana. Quanto a Nordeste de Amaralina e Vale das Pedrinhas, contavam com representação de CM atuante em todo o bairro, bem como BCSs próximas. No entanto, uma hipótese do porquê de sua relativa “passividade” frente aos vizinhos Santa Cruz e Chapada do Rio Vermelho, igualmente densos e dominados pela mesma facção, seria a sua função de “zona tampão” do narcotráfico frente aos territórios de maior renda, bem como possuírem áreas “calmas” de consumo (“cracolândias”) e índices socioeconômicos um pouco melhores com relação aos vizinhos.
Para os bairros concentradores de agentes da VL, como Engenho Velho da Federação, uma parte da Federação, Chapada do Rio Vermelho, Santa Cruz, Boca do Rio, partes de Pituaçu e de Itapuã, esses corroboraram para a teoria de que “todo local com taxa elevada de homicídio fosse ‘pobre’, embora nem todo local ‘pobre’ tivesse taxa elevada de homicídio” (BEATO, 2012, on-line).
Enfim, os locais que reuniram agentes da violência letal seguiram padrões de alta densidade, conflitos entre facções (ou dentro de uma mesma organização criminosa) e menor estabilidade dos “laços de solidariedade” entre os moradores, não somente por fatores socioeconômicos, mas também por fraca mobilização de CM (o que pode ter ocorrido na Boca do Rio e em Itapuã, por exemplo, merecendo maiores estudos). Não nos aprofundamos mais nesse argumento, pois seriam necessárias entrevistas com os moradores para confirmar esses indícios, o que não foi possível devido à pandemia do coronavírus de 2020.
2. SOCIABILIDADE VIOLENTA E
NÃO APENAS MORTE
Nossa segunda ideia-força foi de que a “sociabilidade violenta” (conceito de Machado da Silva, 2004, 2010) não seria associada somente à morte. Nos bairros populares onde havia algum tipo de dominação por grupos criminosos, poderia haver também a chamada “paz armada”, como já foi mencionado e conforme relataram as notícias da mídia.
O dia a dia do bairro popular dominado poderia protagonizar “toques de recolher”[1] para o comércio e para os moradores, além de “tribunais do crime” do tráfico de drogas, como foi notado no Nordeste de Amaralina. As práticas incluíam a proibição, pelo narcotráfico, de roubos e arrombamentos no bairro, pessoas retiradas à força de casa quando “intimadas”, maridos advertidos por violência doméstica, braços e pernas quebrados, ou mãos e pés baleados, quando a “sentença” não era a morte, bem como a proibição de buscar ajuda nos hospitais da região, nesses casos, para não levantar a suspeita da polícia, conforme relatos de Wendel (2020c).
Mesmo em territórios onde havia Base Comunitária de Segurança (BCS), parecia haver também uma espécie de “pacto silencioso” em que os grupos criminosos “respeitavam” a polícia comunitária, por ser uma tropa que tinha por princípio não entrar em confronto, porém o mesmo não acontecia quanto ao policiamento ostensivo, conforme citou Ferreira-Melo (2020).
Esse cotidiano foi amplamente discutido em outros trabalhos, mas precisaria continuar sendo aprofundado dentro da temática da “sociabilidade violenta”, em Salvador, porque apontamos aqui uma visão de moradores através das notícias jornalísticas, e não como fonte primária. Um exemplo desse tratamento dispensado à população foi o caso do jovem que trabalhava em um mercadinho, em Santa Cruz, em um caso de morte por policiais:
"Ele estava no chão sangrando e foi arrastado pela farda na escadaria até a parte de baixo, por policiais que deram mais tiros nele. Em seguida, um policial colocou na mão dele uma pistola e usou o próprio dedo de R. para efetuar o disparo, para dizer que houve confronto. Ainda puseram droga nele e os PMs fizeram isso na frente de todo mundo" (WENDEL, 2020d, on-line).
Ou ainda a “sociabilidade violenta”, enquanto “cotidiano”, como rotina de intimidações no Engenho Velho da Federação:
"Ao colocar o pé na rua, já estamos em perigo. Não tem dia, não tem hora, não tem lugar. Já teve tiroteio até meio-dia por aqui. A única maneira de ficar seguro é se trancar em casa e, ao som do primeiro tiro, correr para se esconder embaixo da mesa. Estamos piores que prisioneiros, pois na prisão há o banho de sol. Aqui nem conseguimos colocar a cabeça na janela [...] Para sair em segurança, os residentes criaram uma espécie de linha de comunicação com pessoas em todas as ruas da região. Alguém só sai de casa após todos disserem que está tranquilo. Mesmo assim, o medo continua. “Meu filho mesmo me liga a cada hora perguntando se estou bem”, diz" (WENDEL, 2020e, on-line).
"A marca registrada de Kekeu e Pai (considerados pela polícia como chefes do narcotráfico no Engenho Velho da Federação) é a violência. Moradores contam que eles costumam colocar fogo em ônibus e já chegaram a explodir uma base policial. Toda segunda-feira, eles organizam um “tribunal do crime”, julgando e punindo aqueles que não seguem suas ordens" (WENDEL, 2020e, on-line).
NOTA
[1] Na Av. Jorge Amado, na Boca do Rio, pelo menos 50 estabelecimentos comerciais, entre churrascarias, salões de beleza e consultórios de dentistas, foram fechados durante um dia, a mando dos operadores do tráfico. “Eu estava aqui no caixa, trabalhando normalmente, quando um homem jovem, aparentando uns 25 anos, chegou e disse: moço, me desculpe, mas vocês vão ter que fechar, morreu um grande amigo nosso e estamos de luto”, disse um comerciante. Outra prática comum para intimidar a população foi a queima de ônibus em avenidas de grande circulação de Salvador (MUNIZ, Tailane. Após morte de líder do BDM, homens armados ordenam toque de recolher na Boca do Rio. “Correio 24 Horas”. Salvador, 11 ago. 2017. Salvador. Disponível em: <https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/apos-morte-de-lider-do-bdm-homens-armados-ordenam-toque-de-recolher-na-boca-do-rio/>. Acesso em: 11 jul. 2020).
3. VIOLÊNCIA LETAL URBANA
COMO OBJETO DE ESTUDO
Em nossa terceira ideia-força, propusemos a ênfase no objeto de estudo: as VLs na Orla Atlântica. Além da escolha do homicídio doloso praticado por civis (HDPC) e da morte provocada por policiais (MPP) como “medição concreta da violência urbana”, por sugestão de Oliveira (2003), através do índice por 100 mil hab./ano para o município, mas também para o conjunto de bairros, como alertou Cezar e Cavallieri (2002).
Observamos que a agressividade da violência urbana se mostrava indissociável das ocorrências de morte no espaço urbano (KRUG, 2012). Por tal condição, e pela categorização da violência letal urbana enquanto uma acusação, não como conceito, como sugeriu Misse (1999), apontamos para as circunstâncias mais comuns que representaram a vontade dos agentes da violência. Partindo desse raciocínio, o nosso objeto de violência letal urbana não se mostrou somente como criminalidade, mas igualmente uma “estratégia para a construção do espaço urbano” (SAMPAIO, 2012) e “controle” do mesmo (GLEBBEEK; KOONINGS, 2015).
Vimos a estreita relação da violência urbana com a segregação socioespacial e racial na cidade. Isso foi nítido na Orla Atlântica, região que concentra territórios de maior renda contíguos a bairros populares, o que acabou por “puxar para baixo” seus índices de VL com relação a todo o município de Salvador.
Contudo, ficaram concentrados os agentes da violência letal urbana, quase que exclusivamente, nos bairros populares. Dessa forma, o município de Salvador como um todo teve, geralmente, taxas maiores de VL do que apenas a sua Orla Atlântica. Nos bairros populares, graves fenômenos acontecem, especialmente quanto ao objeto da violência letal urbana ligado à faixa etária jovem, de cor da pele preta e parda e com uso massivo de armas de fogo[2].
NOTA
[2] Desde 2019, o governo federal de Bolsonaro veio promulgando decretos para ampliar a compra e o registro de armas, especialmente para colecionadores, atiradores desportivos e caçadores, os chamados CACs, disponibilizando-lhes acesso a cada vez mais armas, o que poderia favorecer, além de extravio, furto e roubo de armas pelo crime organizado, a formação de milícias para diversos interesses. Ademais, segundo o FBSP (2020), a curva de homicídios no Brasil, que vinha em descendência de 2018 para 2019, voltou a ascender de 2019 para 2020, coincidentemente com a promulgação de facilidades ao armamento. In: “A política da violência no Brasil”. Salvador: PPGF/UFBA, 2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Y1v1yuvgcE&ab_channel=
PPGFUFBA>. Acesso em: 18 abr. 2021.
4. RELAÇÃO ENTRE TRÁFICO DE DROGAS
E SEGURANÇA PÚBLICA
Nossa quarta ideia-força diz respeito às relações entre os agentes da violência nos bairros populares da Orla Atlântica (incluindo as milícias, que são formadas por agentes públicos e/ou particulares). De início, precisamos relembrar que os investimentos do Pronasci e PLANESP (Políticas de Segurança Pública a nível nacional e estadual), em 2012, que vieram para proteger a população em vulnerabilidade social (inclusive os detentos), não foram capazes de enfraquecer a ação do narcotráfico, e pouco melhoraram a investigação dos assassinatos, sobretudo, pela falta de mais um Instituto Médico Legal (ILM) em Salvador, como apontou Cicerelli (2013).
A cultura policial, igualmente, continuou inalterada (REIS, 2005; GREBBEEK; KOONINGS, 2015; DEL-COLLE, 2019; GRILLO, 2019; CRUZ ET AL, 2020; JORNAL NACIONAL, 2020), sendo também a atuação de cada batalhão de Polícia Militar, ou departamento de Polícia Civil, diferenciada de acordo com o preconizado pelas instituições. Como tentativa de mudança cultural nas Companhias Independentes de Polícia Militar (CIPMs) e nas Bases Comunitárias de Segurança (BCSs), a partir de 2020, o governo da Bahia aumentou o número de comandantes mulheres (geralmente mulheres negras e evangélicas)[3] nas unidades, sendo quatro as comandantes femininas das oito CIPMs da OA.
Com relação à presença da BCS em bairros populares, observou-se, ainda, certo ajustamento do narcotráfico frente a essa nova condição, com maior cuidado por parte dos operadores da droga na circulação armada, mas que continuava matando, mudando-se então onde se matava, como apontou Conceição (2015), com homicídios dolosos mais dispersos pelos bairros populares.
Uma dúvida que ainda pairava sobre a BCS, segundo Conceição (2015), era o risco de que a base culminasse em práticas de extorsão sobre os moradores, por parte de alguns policiais, pois os agentes recém-formados não garantiam a “pureza” da estrutura corruptível, ainda que, como apontamos, as comandantes de três das cinco BCSs da OA fossem mulheres (sem cairmos na ingenuidade de uma "pureza" feminina também). Afinal, a corrupção policial como forma de cultura organizacional mereceria ter um estudo melhor aprofundado além deste trabalho, justamente por parecer envolver questões de caráter muito complexas.
Outra característica da BCS que buscou “engajar” polícia e comunidade, ou até mesmo desmobilizá-la, pensando na lógica de abertura do mercado imobiliário sobre futuras áreas de intervenção, foi a sua instalação em espaços históricos de aliança política da comunidade[4]. Além disso, tais instalações, na proximidade com a saída para territórios de alta renda adjacentes (exceto no Bairro da Paz), poderia corroborar com essa hipótese de desmobilização comunitária.
Ademais, é sempre importante destacar a mudança cultural-organizacional ocorrida da PM/BA a partir de 2010, onde o índice de mortes provocadas por policiais (MPP), em Salvador, ultrapassou o índice baiano e foi, então, aumentando constantemente nos anos seguintes, chegando ao dobro do índice do estado, em 2018.
Vimos que as Políticas de Segurança Pública, desde 2012, tentaram justamente o contrário quanto à violência policial, conseguindo resultados significativos na capital apenas em 2019. Portanto, esse fenômeno precisaria de um estudo individual a fim de ser elucidado.
A relação combativa entre polícia e tráfico teve grandes efeitos sobre o nosso objeto de pesquisa (a violência letal), pois a própria violência acaba sendo estratégia de ambos os lados. Do lado do Poder Público, a “guerra às drogas” induziria os consumidores a buscar fontes alternativas de renda para pagar pelo entorpecente, porém, mais violentas (como roubos, violência doméstica, extorsões etc.)[5].
Do lado do tráfico de drogas, ocorreu a proteção a todo custo, como pudemos observar na descoberta de um “bunker” em Salvador – estrutura fortificada embaixo da terra – onde estavam R$ 1,5 milhão em drogas[6] da facção Bonde do Maluco (BDM), atuante na Baixa da Soronha, em Itapuã, segundo o Jornal Correio 24h (2019). Essa apreensão revelou, ainda, uma rede de “lavagem de dinheiro”, com um veículo apreendido em nome da filha do operador da carga, e ela, estudante de faculdade particular de renome na cidade (WENDEL, 2019c, on-line).
NOTAS
[3] Para Rosalba Lopes (1999, pp. 16-17): “Na complexa rede de valores que compõem a PM, a religião (mormente evangélica) desempenhou um papel crucial na consolidação da liderança, sobretudo por oferecer elementos substitutivos daquilo que parecia irremediavelmente quebrado (a lei e a ordem)”. In: LOPES, Rosalba. “Líderes e representantes”: o processo de formação e consolidação das lideranças do movimento realizado pelos praças da Polícia Militar Mineira. Belo Horizonte, 1999 (mimeo).
[4] No Calabar, a Biblioteca Comunitária do bairro; no Nordeste de Amaralina, o Centro Social Urbano (Colégio Estadual Polivalente de Amaralina); na CRV, acima do Campo de Futebol; em Santa Cruz, ao lado do Colégio Dionísio Cerqueira, bem próximo à entrada do Parque da Cidade; no Bairro da Paz, em frente à Escola Municipal Nossa Senhora da Paz, no centro do bairro.
[5] Para o consumidor que não enfrentou tantos obstáculos com relação ao financiamento do entorpecente, o “delivery da droga” foi uma forma "menos violenta" de tráfico, que difere das práticas "mais agressivas" para a obtenção da droga. Foi mais difundida pela pandemia de 2020/2021 e tendeu a ser menos violenta por ter menos intermediários, embora ainda bastante conflituosa entre os operadores, por conta da concorrência da venda.
[6] Desse montante apreendido (200 kg), 55% era maconha, 37% era crack e 8% cocaína (WENDEL, 2019c), dando-nos indícios do perfil de entorpecentes que era vendido pelo BDM em Itapuã.
5. SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL E RACIAL
Nossa quinta ideia-força foi a segregação socioespacial e racial, pois, no Brasil, as piores condições de vida, habitabilidade e renda foram correlacionadas à raça/cor da pele, apontando desigualdades socioeconômicas e raciais sobre pessoas negras, reproduzidas de geração para geração, de acordo com Galindo e Pedreira-Júnior (2021).
Do ponto de vista habitacional, Salvador foi marcada pela “velha prática” da posse de terrenos. Embora a lei nacional de 1850 passasse a priorizar a propriedade, por meio da compra junto ao governo, até o fim dos anos 1960, na capital baiana ainda funcionava o sistema de ocupação de terras (as chamadas "invasões").
Quando a lei municipal da Reforma Urbana permitiu, a partir de 1968, a alienação das terras municipais, a questão da habitação da população de menor renda e negra se agravou em meio à escalada dos interesses imobiliários na cidade. (BRANDÃO, 1978, 1979, 2001, 2007; SEMOB, 2007; GORDILHO-SOUZA, 2008; CARVALHO-SOARES, 2009; FLÁVIO-GOMES, 2009; SEMOB 2017; SOUSA, 2020).
Mesmo com origem comum no processo de migração do interior para a capital, houve bastante heterogeneidade entre as ocupações em Salvador, o que dependeu do tempo de formação, da dinâmica de crescimento e da natureza dos grupos que as promoveram (BRANDÃO, 1978, 1979, 2001, 2007). Isso acabou gerando importantes distinções entre bairros populares concentradores e não concentradores de agentes da VL, podendo haver, portanto, maior ou menor letalidade violenta.
Assim, na Orla Atlântica, região de crescente expansão do Eixo Nordeste da cidade e intenso mercado imobiliário, houve também uma forte marca da ocupação irregular, da vulnerabilidade social e do risco à violência letal. Essa fragilidade significou não somente a “pobreza” monetária dessa população, mas também a falta de bem-estar, de cidadania civil completa, de oportunidades de emprego e de qualidade de vida nos bairros populares, com desigualdade social e densidade excessiva, quando comparada a dos territórios de maior renda, e não somente diferença física das construções, como relatou (GALINDO; PEDREIRA-JÚNIOR, 2021).
Tal separação tem caráter social e espacial (TORRES; MARQUES et al, 2003; CARDIA, 2004; RIBEIRO et al, 2004; VILLAÇA, 2004; BURGOS, 2005; BRANDÃO, 2007; CARVALHO-SOUZA, 2009; CARVALHO; PEREIRA, 2014; FORNASIER et al, 2019), além de racial (GARCIA, 2006; CASTEL, 2008; CARVALHO-SOARES, 2009), levando a uma “integração estigmatizada” dos moradores de bairro popular com a cidade como um todo.
Tornou-se necessário também perscrutar, para além deste trabalho, sobre “bairros negros”, cujas teses já se fazem presentes para explicar relações étnico-raciais de produção do espaço urbano dentro de bairros como Calabar, Alto das Pombas, Engenho Velho da Federação e Itapuã, por exemplo, que também diferem da produção da cidade do pensamento hegemônico.
Foi constatado que tal segregação socioespacial e racial exige, ainda, a presença de consistentes laços de solidariedade e de afeto entre os moradores, que não podem ser comprados por recursos financeiros, mas que criam condições melhores de habitabilidade e de cidadania, (TORRES-RIBEIRO, 2007). Isso implica principalmente na relação do jovem com o desemprego, pois a falta de uma rede de proteção impede o recém-chegado no mercado de trabalho de encontrar uma oportunidade, impedindo-o também de alcançar alguma mobilidade social (PEDRÃO, 2009).
Um exemplo concreto de quebra de laços sociais, influenciada diretamente pelo Poder Público, foi a realocação das ocupações “Bico de Ferro” e “Alto de Ondina” para a Boca do Rio, nos anos 1960, destruindo laços de solidariedade que existiam entre seus moradores. Concomitantemente, merecendo um estudo mais aprofundado sobre falta de laços e violência, a Boca do Rio foi o bairro que mais concentrou agentes violentos em nossa pesquisa, entre 2018-2020.
6. JUVENTUDE E DESEMPREGO
Nossa sexta e última ideia-força foi a questão relacionada à juventude e ao desemprego em Salvador. Como principais vítimas de violência letal, os jovens tomaram essa posição a partir dos ciclos da maconha (1980), da cocaína (1990), do crack e de seus genéricos baratos (2000), a merla e o oxi, sendo o tráfico um fenômeno essencialmente urbano e das grandes cidades brasileiras (CARVALHO-FILHO et al, 2018).
Não tivemos aqui uma única teoria que pudesse explicar o envolvimento da juventude na criminalidade, mas a junção de argumentações. Em primeiro lugar, o “ethos guerreiro” (ZALUAR, 1999, 2007) representa a disposição do jovem para “matar e morrer”, como um “espírito guerreiro”, mas que, por si só, não se encaixa no cenário de segregação dos bairros populares.
Então, consideramos igualmente a “forma de expressão” do jovem (SOARES, 2019), onde outros meios faltantes no seu convívio podem persuadi-lo a não se envolver com a criminalidade, como esporte e cultura[7]. No entanto, o jovem, enquanto ser complexo e multifacetado, não é totalmente excluído do contexto social, pois pode estar fora do apoio estatal, mas não das redes sociais (internet) e do mercado de consumo (CASTEL, 2008; DAL-MOLIN, 2011). Portanto, poderia ser um despertar do desejo de adquirir renda para “integrar-se”. Dessa forma, não importando de que forma o faz, o jovem sem algum tipo de orientação ou alternativa (CARDIA, 2004; CONCEIÇÃO, 2015), que busca atender livremente à sua vontade.
Desse jeito, jovens vítimas de VL tiveram um ciclo preestabelecido de vida e morte em Salvador (LIMA, 2011), do qual o empírico demonstrou que poderiam ter escapado com medidas sociais de inclusão ou por conversão religiosa[8] (CONCEIÇÃO, 2015).
Em análise de Matos-Andrade (2016), sobre homicídios dolosos praticados por civis, a maioria das vítimas (72%) tinha ao menos o ensino fundamental completo e, desses, a maioria era trabalhador de serviços (23%), vendedor, comerciante, serviços gerais, porteiro, garçom e segurança, ocupações que não exigiam alta qualificação técnica, e 64% (do total de homicídios) tinham suposta relação com o narcotráfico. Portanto, tivemos indícios para uma futura investigação de uma possível correspondência entre “trabalhadores subqualificados” (PEDRÃO, 2009; MACHADO DA SILVA, 2010) e a sua eventual relação com tráfico de drogas, supostamente por maior recompensa financeira.
Para o jovem que se afasta da criminalidade, na maioria das vezes sem nunca ter participado efetivamente, ainda precisa que tenha boa relação com a organização criminosa do bairro onde mora, a fim de resguardar-se, tanto fora quanto dentro do presídio, caso seja conduzido em provável repressão das autoridades policiais, ainda que nada faça para isso (LESSING, 2018).
Quanto à questão do desemprego, uma das causas da entrada do jovem na criminalidade, rematamos que o cenário de Salvador foi propício a esse acontecimento. Nesse sentido, com a maioria das vagas industriais na Região Metropolitana, bem longe dos bairros soteropolitanos, houve ainda um desemprego tecnológico (do jovem sem formação técnica) para trabalhar no terceiro setor (comércio e serviços). Essa foi uma suposta vocação da capital baiana para os serviços, tendo a “indústria do carnaval” como paradigma, com grandes lucros subsidiados pelo Estado à iniciativa privada e superexploração do trabalhador "subqualificado" (PEDRÃO, 2009).
Assim, há fenômenos relacionados ao desemprego e à VL que merecem estudos mais aprofundados, como: (i) desigualdade social entre jovens e a sua falta de ocupação nas ruas, como apontou Ramos de Souza (1998); (ii) evasão e atraso escolar na composição de crises sociais, como levantado por Ribeiro et al (2004) e; (iii) enfraquecimento das instituições socializantes com banalização da violência, de acordo com Tavares dos Santos et al (2011).
Para fechar esta análise, tomamos dois casos emblemáticos: Santa Cruz e Bairro da Paz, extremos que fugiram das lógicas. Em Santa Cruz, a maior taxa de mortes provocadas por policiais (MPP) fez a Base Comunitária de Segurança (BCS) parecer pouco pacificadora, não por conta do policiamento comunitário, mas pela ação letal de outras seções de polícia atuantes no bairro, como as Rondas Especiais do Atlântico (Rondesp Atlântico), com origem em companhias de choque da PM/BA e baseadas nos modelos da ROTA (SP) e do BOPE (RJ).
Houve indícios de tratamento criminoso dado a moradores, por alguns policiais dessa unidade, com alterações no local de crime e imposição de culpa com implantação de armas e drogas na cena para tentar justificar algumas MPP. Como bairro popular, Santa Cruz tinha vulnerabilidades sociais e risco para a violência urbana, porém o seu Conselho de Moradores (CM) não apresentou atividades que pudessem proteger o jovem da ação policial ou do tráfico de drogas, por meio de algum tipo de inserção social, embora a BCS oferecesse alguns cursos profissionalizantes.
Isso foi diferente no Bairro da Paz, mesmo onde a condição de vulnerabilidade social era maior (população com menor renda média da Orla Atlântica, mais jovem, menos escolarizada e com maior porcentagem de ocupações irregulares), além do risco de violência urbana presente, com grupos de extermínio atuantes, conforme apontado na CPI (2005). No entanto, apresentou menor índice de VL do que a maioria dos bairros populares da OA.
Com movimentos sociais mobilizados, parcerias e Base Comunitária de Segurança (BCS) atuante na questão do jovem, o Bairro da Paz contava com Conselho de Moradores (CM) atuante e representativo, fortalecendo os laços de solidariedade no bairro. As violências letais nesse território vitimavam, sobretudo, pessoas maiores de 30 anos, principalmente com a atuação de “grupos desconhecidos”, casos que não puderam ser elucidados nesta pesquisa.
Desde os anos 1980, Santa Cruz e Bairro da Paz passaram por diferentes transformações. Ambas foram áreas de resistência de ocupação popular na OA, em meio à valorização e especulação da terra, porém tiveram diferentes mobilizações depois da chegada do tráfico da cocaína (1990). Enquanto o Bairro da Paz conseguiu administrar conflitos, com a ajuda do CM e de parcerias, Santa Cruz foi perdendo representatividade e se tornou cada vez mais um território disputado por facções do tráfico, e pela própria polícia, à medida que se intensificavam conflitos e, principalmente, as mortes provocadas por policiais (MPP), bem como envolvendo a população em situações como sequestros (por criminosos em fuga da polícia) e “fogo cruzado” entre policiais e operadores do tráfico.
A tendência observada, entretanto, devido à crise econômica brasileira desde 2015 e cenário pandêmico desde 2020, foi que o Bairro da Paz começou a perder parcerias e aumentou a sua vulnerabilidade social, refletindo em mais risco de violência urbana. Enquanto isso, Santa Cruz, também afetado por crise econômica nacional e pandemia, continuou em disputa com a ação policial de enfrentamento se sobrepondo à inteligência e à investigação, alimentada ainda pelo cenário da política estadual de eliminação do narcotráfico a qualquer custo, o paradigma de “guerra às drogas”. Com um adendo, no caso de Santa Cruz, uma "guerra" acontecendo na proximidade com “áreas nobres” de Salvador, como Horto Florestal e Pituba, área estratégica tanto para o mercado de drogas quanto para o imobiliário.
[7] A exemplo de alguns bairros populares, onde a VL foi diminuindo ao ponto em que os jovens eram incluídos em atividades esportivas e culturais, como no Calabar, no Alto das Pombas e no Bairro da Paz.
[8] Poder semelhante ao que destacamos a respeito da constituição de comandantes mulheres evangélicas nas CIPMs e BCSs de Salvador, onde se esperava, com a religião protestante neopentecostal, uma “restauração” cultural-organizacional contra a violência. Quanto às outras religiões, seriam necessários estudos aprofundados.