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CONCLUSÕES

Nossa experiência com Gestão da Segurança Pública e Arquitetura e Urbanismo nos permitiu um olhar técnico-investigativo e, ao mesmo tempo, vivencial dos fenômenos da violência letal. Os estudos sobre racismo e criminalização da “pobreza” nos foram fundamentais para tomar uma linha de raciocínio. Assim, vimos ações contraditórias do Estado que, ao mesmo tempo que agia com letalidade policial, como sinônimo de “segurança pública”, tinha também prerrogativas de que os bairros populares, sobre o que não fosse relativo a essa “segurança”, tratassem de suas próprias questões, mesmo impregnados por vulnerabilidade social e, portanto, com alto risco à violência urbana.

Além disso, tivemos que filtrar as estatísticas, que continham filosofias sociais implícitas, denotando preconceitos com relação à apresentação dos dados como, por exemplo, indicando bairros “pobres e violentos” e/ou incitando uma “guerra às drogas”. Foram discursos dominantes que, além de não considerarem a dinâmica complexa da criminalidade em espaços urbanos fraturados, ainda trataram de colocar as vítimas somente como números sobre um mapa. Tentamos ir contra essa “incapacidade” de interpretação dos bairros populares, procurando vê-los de modo heterogêneo, com realidades socioeconômicas distintas dentro de uma mesma divisão administrativa, seja na esfera municipal ou na gestão estadual da Segurança Pública.

Então, colocando sob suspeição as estatísticas, apoiamo-nos sobre uma teoria pós-positivista, de modo a entender e explicitar o cenário da Segurança Pública em Salvador, levando em conta questões históricas e raciais em Arquitetura e Urbanismo, investigando a violência letal como atravessadora de territórios e conjunto de códigos sociais e sociabilidades, no âmbito local, em torno de negócios ilícitos. Por isso, fomos em direção ao entendimento de uma possível sociabilidade violenta[1] em Salvador, mostrada a partir dos próprios dados estatísticos.

Evidenciamos o uso sistemático da violência letal, sem justificação, tanto por parte do Estado quanto de outros grupos, principalmente daqueles do tráfico de drogas. Pudemos, ainda, com os dados, desmistificar uma “hipótese PCC”[2] em Salvador, pois os índices não mostraram tendência de queda nas taxas de violência letal, por mais que alguns números tenham diminuído entre 2018-2019. Havia um movimento inverso na Bahia, que se prenunciava, alimentado por encarceramento excessivo e disputas pelo tráfico, aumento da repressão policial com menor inteligência e investigação, bem como, a nível nacional, uma política armamentista, crise econômica, pandemia do coronavírus e aumento da vulnerabilidade social em todo o país, em 2020.

Bairros populares carentes de garantias fundamentais para a população, sobretudo para aquela negra, têm relativa precariedade de infraestrutura frente aos territórios de pessoas de média e alta renda. Além disso, com menos mobilização comunitária e dificuldades de acesso à Justiça, esses territórios passam por uma monopolização do mercado de drogas (cocaína e derivados, desde 1990) e pela entrada de facções criminosas em seu cotidiano. Essa sociabilidade se torna violenta não somente por morte, mas também por uma “paz armada” e por “leis do silêncio”. Portanto, ainda que sejam bairros populares com menores índices de violência letal, não significam necessariamente “ilhas de passividade”, mas locais de “inércia de tensão”.

Mantendo o distanciamento crítico de um ex-policial-militar e atualmente acadêmico arquiteto-urbanista curitibano, morando em Salvador, discutimos a violência letal em bairros populares que passam por segregação socioespacial e racial. Trata-se de uma separação física de classes, seja por avenidas quase intransponíveis, parques, muros ou grades, sobretudo de pessoas brancas de média e alta renda em relação aos bairros formados majoritariamente por pessoas negras e de menor renda. Esta classe, historicamente prejudicada nos índices socioeconômicos do país, foi levada à vulnerabilidade e ao risco para a violência letal, no entanto, em complexa relação, jamais cabendo uma ligação direta da “pobreza” com a letalidade violenta.

A Orla Atlântica de Salvador foi o nosso recorte territorial, importante para discutirmos essas relações, além de legitimarmos o nosso estudo dentro do programa de Arquitetura e Urbanismo. Esta região se consolidou, principalmente depois de 1975, através de uma política pública de criação de um Novo Centro e um eixo em direção ao aeroporto e a Região Metropolitana da capital baiana, bem como o favorecimento estatal a um mercado imobiliário bastante atuante. Isso criou interações complexas entre territórios de alta e média renda, formados na expansão, junto aos bairros populares que também cresciam rapidamente como “ilhas” na atual região mais valorizada de Salvador, englobando 30 bairros da capital.

Do “macro ao micro”, fizemos uma análise quantitativa da violência letal na OA de Salvador, utilizando a segregação socioespacial e racial como um contexto principal, não somente através de dados estatísticos, mas também problematizando-os em suas dinâmicas locais, como na capilarização e nos fluxos do crime letal e de suas vítimas nos bairros.

As estatísticas de homicídios dolosos praticados por civis (HDPC) evidenciaram o quanto o racismo e a desigualdade social fragmentaram a sociedade estudada e a deixaram vulnerável e sob risco de desintegração das relações familiares-comunitárias, abrindo as portas para uma sociabilidade violenta com a presença do tráfico de drogas. A diferença da instalação ou não dessa sociabilidade em bairros populares se deu pela concentração de agentes da violência, e não necessariamente por sua posição social.


Através de levantamentos em mídias e redes sociais, apontamos facções criminosas disputando o varejo de drogas em Salvador e em sua Orla Atlântica. Além disso, duas organizações criminosas de alcance nacional, uma paulistana e outra carioca, estavam presentes na capital baiana, nem sempre de maneira direta no tráfico, mas também se associando a grupos locais no fornecimento de armas e drogas. Dessa forma, as ações do tráfico mapeadas nesta pesquisa foram extremamente violentas, com tiroteios entre grupos criminosos rivais e a presença de “tribunais do crime” servindo como forma de punição ou para “exemplo” nos casos de disputas ou delações.

Os números de mortes provocadas por policiais (MPP), por sua vez, mostraram que a Política de Segurança Pública da Bahia (sobretudo em Salvador), adotou uma linha de enfrentamento no uso de forças policiais, uma verdadeira “guerra às drogas” (especialmente no bairro de Santa Cruz), maior do que deveria agir com relação à inteligência e à investigação (com planejamento das operações, mandados judiciais, videomonitoramentos etc.), ajudando a alimentar um ciclo de violência nos bairros populares.


Por conseguinte, olhamos para a composição racial de Salvador onde, de acordo com dados da PNAD (2017)[3], as pessoas negras representavam mais de 80% da população da cidade, todavia, na capital baiana (2018), dados do Ministério da Saúde[4] revelaram que 1/15 foi a proporção de MPP de pessoas brancas comparadas àquelas de pessoas negras. Junto com os HDPC, comprovamos que as violências letais, como um todo, incidem muito mais sobre uma população masculina, jovem e negra, com escolaridade fundamental incompleta, não absorvidos ou empregados de forma precária pelo mercado de trabalho da capital.


Constituiu-se, portanto, uma “política de morte estatal”, seja por omissão[5], quando não se faz nada diante do aumento de homicídios, ou por cumplicidade do Estado, quando os próprios agentes públicos também são agentes de violência, representada nos bairros populares com maiores índice de letalidade[6]. Outra questão da atuação do Estado nos territórios populares foi que, na presença de Bases Comunitárias de Segurança (BCS) da Polícia Militar, o tráfico de drogas não foi inibido e, pelo contrário, passou a agir com mais garantia de que não seria incomodado por facções rivais, devido à presença de policiais. Além disso, notou-se muito mais uma instalação estratégica das BCS em áreas pretendidas pelo mercado imobiliário, com alto valor da terra nos arredores, do que nos bairros com maiores taxas de letalidade e cujo valor da terra ainda é baixo, como na Boca do Rio.

Enfim, temos um trabalho para além das páginas, que repercutiu, além de um conhecimento que servirá para a sociedade baiana, também gerou entrevistas à televisão, de 2019 a 2021, algumas vezes em escala nacional. Falamos sempre dos fenômenos da violência letal urbana, não somente como causa e efeito, mas apontando Políticas de Segurança Pública e produção do espaço urbano equivocadas, merecendo revisões e novos estudos aprofundados a partir das conclusões desta pesquisa, como da pesquisa das relações sociais dentro e fora dos bairros enquanto provenientes de uma herança colonial, das relações de poder entre colonizadores e colonizados.


[1] MACHADO DA SILVA, L. A. Sociabilidade violenta: por uma interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil urbano. Sociedade e Estado, revista do Departamento de Sociologia da UnB, Brasília, v. 19, nº. 1, p. 53-84, junho 2004. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0102-69922004000100004>. Acesso em: 10 mar.  2020.

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[2] Em 2016, a BBC Brasil consultou especialistas sobre “hipótese PCC”, de que a taxa de homicídios cairia por monopolização do tráfico em São Paulo, que complementaram: (i) menos jovens entre a população, reduzindo o grupo de risco; (ii) aperfeiçoamento da polícia em tecnologia e treinamento; (iii) mudança na dinâmica dos homicídios, pois o crime organizado “regulava” assassinatos e; (iv) Estatuto do Desarmamento (2003) que, apesar dos decretos de flexibilização de porte e posse de armas em 2019-2020, ainda segurava alguns crimes violentos (GUIMARÃES, Thiago. PCC não derrubou homicídios sozinho em SP, dizem pesquisadores BBC Brasil em Londres, 18 fev. 2016. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/02/160217

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[3] IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), 2017.  Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/busca.html?searchword=

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[4] DATASUS. Sistema de Informação sobre Mortalidade - SIM. Ministério da Saúde. Disponível em: <http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sim/cnv/ext10ba.def>. Acesso em: 17 mar. 2020.


[5] Segundo o Instituto Sou da Paz, apenas 22% dos homicídios dolosos (com a intenção de matar) foram esclarecidos, em 2018, na Bahia (enquanto a média nacional foi de 44%) (fonte: Pesquisa “Onde Mora a Impunidade”, divulgada pelo Instituto Sou da Paz, em 2021. Disponível em: https://soudapaz.org/o-que-fazemos/conhecer/pesquisas/politicas-de-seguranca-publica/controle-de-homicidios/?show=documentos#5529. Acesso em: 13 out. 2021).


[6] CALAZANS, Márcia E. de. A espacialização da morte e padrões mórbidos de governança espacial: homicídios de jovens em Salvador 2010-2015. Cadernos do CEAS, Salvador, n. 238, p. 568-594, 2016.

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