AGENTES DA VIOLÊNCIA
POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA, POLÍCIA E VIOLÊNCIA LETAL URBANA
Nesta parte, mostramos uma fração de como se organizam socialmente os agentes da violência letal urbana e suas relações com base no uso da força, e por quais mecanismos opera o cotidiano dessas ligações de poder, a fim de caracterizarmos a VL urbana como um objeto. Nossa ideia aqui foi trabalhar sobre os espaços concentradores de agentes da violência e não sobre “espaços violentos”.
Dessa maneira, a complexidade da violência letal urbana não está apenas na sua gênese e nas suas diversas formas de expressão, mas também nas formas como o governo e a sociedade (dois dos agentes da violência) veem o problema. Então, é questionável como a estrutura consolidada de intervenção estatal, caracterizada por ações setoriais, fragmentadas, pontuais e descontínuas, pode assegurar a implementação de Políticas Públicas que afetem as próprias causas estruturais da violência (CORDEIRO et al, 2007). Desigualdade, vulnerabilidade e riscos à VL não podem ser afastados senão por transformações estruturais e não somente estatais.
Na situação atual, a VL urbana deixa supor que ainda nem sequer tenha chegado a constituir um problema social considerado suficientemente relevante para mobilizar a opinião pública, e o próprio Estado, principalmente, por desinteresse do sistema em resolvê-lo (SILVA-FERREIRA, 2017). Um exemplo disso é a raridade de políticas no Brasil voltadas à diminuição do índice de VL. No entanto, os crimes mais combatidos são justamente aqueles cuja prática (e não o alvo) se concentra entre as pessoas de menor renda, ou seja, os crimes contra o patrimônio. Isso faz com que, embora o direcionamento da Segurança Pública seja nas regiões de maiores índices de violência letal urbana, o uso da força estatal privilegia a proteção patrimonial em detrimento da proteção à vida, como foi observado no aumento das operações policiais na Grande Rio, por Hirata e Grillo (2019).
Além disso, tais operações policiais, quando seguem mandado judicial, tendem a ser muito menos violentas do que aquelas com menor direcionamento, como quando em caso de vingança por morte de policial ou operações feitas de última hora em decorrência de evento violento (HIRATA; GRILLO, 2019). Como tentativa de oferecer mais transparência a essas ações policiais e para a segurança dos próprios agentes contra acusações de abuso de autoridade e para provar o desacato, em 2020, policiais de São Paulo começaram a usar câmeras de segurança acopladas aos seus uniformes, com acionamentos feitos pelos próprios agentes. Em Santa Catarina, essas câmeras tiveram acionamento remoto e começaram a ser utilizadas, também em 2020, enquanto outros estados pretendiam adquirí-las ainda no mesmo ano, como o Rio de Janeiro. De fato, isso não soou como mudança efetiva na cultura policial, a saber, o caso de racismo e abuso de autoridade que repercutiu mundialmente, de George Floyd, onde toda a ação policial que resultou em sua morte foi filmada por câmeras no uniforme dos agentes (JORNAL NACIONAL, 2020). Em 2021, a PM/SP anunciou resultados positivos da diminuição do número de mortes provocadas por policiais (MPP) após a instalação das câmeras. Nesse mesmo ano, a SSP/BA anunciou que estava orçando câmeras para instalar nos uniformes de seus policiais também.
Outros fatores político-institucionais podem reger o comportamento de alguns agentes estatais com relação à violência urbana. Conceitualmente, Hirata e Grillo (2019) definiram esses fatores como “mercadorias políticas”, ou seja, quando algumas relações escusas formadas em período de confronto em áreas ocupadas, entre polícia e tráfico, acabaram por não promover a Segurança Pública, mas por regular as atividades do tráfico e outras práticas-crime. Isso não significa o fim do ordenamento institucional-legal em territórios de conflito, mas a coexistência com vidas perdidas, a partir de sua própria lógica. É nesse deslocamento que a criminalidade urbana e o uso da violência nos enfrentamentos com a polícia e nas disputas entre facções criminosas se configuram, não como um vazio de ordem, mas como um padrão de “sociabilidade violenta” (MACHADO DA SILVA, 2004, 2010).
A respeito dessa atuação do Estado enquanto um dos agentes de violência letal urbana, há geralmente um roteiro preestabelecido de confronto, pronto para a imprensa e presente em escala nacional (BURGOS, 2005). Primeiro, ocorre o registro pela polícia da ocorrência de tráfico de drogas, com a mídia mostrando a foto de entorpecentes, armas e cédulas que teriam sido apreendidas com o jovem morto, na maioria das vezes um homem negro. Sua imagem é livremente veiculada na televisão e as fotos retiradas de suas redes sociais, seguidas de um relato da família contando a história da vítima, tendo ou não envolvimento com o tráfico. Cabe constantemente à família provar a inocência, sempre em divergências com a versão policial (BURGOS, 2005). A alternativa dos parentes é a busca de apoio junto à Corregedoria – da própria polícia – e depois, ou simultaneamente, a chamada da imprensa para dar visibilidade ao caso. Enquanto isso, o contra-argumento da polícia é o de que os familiares estariam protestando em favor de ordens da facção criminosa da qual a vítima teria feito parte. A difusão desse roteiro faz com que a sociedade “aceite” tanto a incompetência das autoridades quanto a morte nos “locais de barbárie” (Op. cit., 2005).
Além disso, nem sempre são claras as motivações e resultados das operações policiais, que ficam restritas ao âmbito administrativo de cada setor de polícia, nem mesmo disponível para toda a instituição policial ou para a Secretaria de Segurança Pública. O que chega à imprensa são apenas “êxitos”, montagens fotografadas com munições e logo da divisão policial. Isso indica não somente a falta de transparência nas ações, mas também a não necessidade de justificar incursões armadas em “favelas” (HIRATA; GRILLO, 2019).
Ainda sobre as mortes provocadas por policiais (MPP,) Bezerra (2014) descreveu, diante das análises de processos judiciais em Salvador e Curitiba que, em nove casos, às vítimas eram imputados crimes de resistência, porte ilegal de armas ou tráfico de drogas, cometidos durante suposto confronto e isso desde a abertura do inquérito, o que inverte o foco para uma “presunção de autoria” e não de inocência, como preconiza o processo penal. Portanto, mostra padrões de violência praticada pela polícia com argumentos sobre antecedentes criminais e objetos não periciados, porém apreendidos com a vítima e fé pública conferida somente ao depoimento dos agentes públicos. Às vezes, a legitimação se dá por meio de ausências: a falta de laudos de confronto balístico, falta de exames de arma de fogo, violabilidade da cena do crime, falta de resquícios de pólvora nos membros, falta de testemunhas etc. (BEZERRA, 2014).
VIOLÊNCIA URBANA E NORMATIVAS
DE “GUERRA”
Um fator característico da violência urbana (aqui não somente letal) é tratá-la como “guerra urbana” (TELLES, 2019), nos fazendo ver uma trama de relações entre seus agentes (Estado e sociedade), de poder ou de impotência. Quando as ações policiais se tornam insurreições, suas alusões à “guerra” denunciam grupos armados (incluindo tráfico de drogas e milícias) que enfrentam o “monopólio estatal da violência” para satisfazer interesses particulares, e ainda reclamam uma resposta violenta do Estado para reaver a “paz civil” (GRILLO, 2019).
Esse mesmo Estado emprega metáforas de massacre e de “genocídio” (FLAUZINA, 2014), sendo um dos principais agentes da violência urbana que, sob o argumento do “combate ao crime” e “da lei e da ordem”, viola o ordenamento jurídico democrático e promove graves distorções dos direitos civis e humanos (GRILLO, 2019), principalmente da população mais vulnerável.
Questionamos se poderia, então, o direito ser um parâmetro do que seria violência urbana ou violência urbana “sem violência”. Misse (1999) e Grillo (2019) chegaram a uma conclusão interessante, de que se empurra para a sociedade civil o sentido negativo da violência (pois o positivo fica com o Estado). Acreditamos, então, que os conflitos representados como “guerra” sejam aqueles que passam a instituir o direito. Portanto, citando Proudhon (1809-1865)[1], “a guerra é produtora de direito”, questionamos se o direito não teria sido, então, refundado, à força, para institucionalizar uma nova ordem (GRILLO, 2019), a de “sociabilidade violenta” (MACHADO DA SILVA, 2004, 2010).
Funda-se ainda, por essa “recriação do direito”, as milícias, ou seja, servidores ou ex-servidores públicos (geralmente militares, que participavam ou não de “grupos de extermínio”) que agem por coação aos moradores e tirando disso o proveito econômico. No Rio de Janeiro, bem como em todo o Brasil, as milícias monopolizam, em algumas comunidades, os serviços ilegais de segurança privada, gás, internet e até mesmo transporte em massa, avançando posteriormente sobre o setor imobiliário. Nas eleições de 2016, muitas milícias já cobravam taxas de políticos que faziam campanha em seus domínios ou lançavam os seus próprios candidatos (CARPANEZ; BERTOLOTTO, 2019).
Além disso, enquanto servidores, as milícias mantêm contatos dentro de repartições públicas e sabem exatamente quando é feita alguma delação, cujo preço é o assassinato que serve de exemplo, ou ainda, o desaparecimento do corpo para que não haja inquérito. Ademais, com a sua atuação, muitas vezes remota, as milícias conseguem estabelecer relações estreitas com o mercado ilegal de drogas, em alguns casos, até mesmo substituindo os tradicionais chefes do tráfico (CARPANEZ; BERTOLOTTO, 2019). Aliada a essa prática miliciana, os “esquadrões da morte” (ou “grupos de extermínio”) teriam começado dentro das instituições policiais, a partir dos anos 1950, com os “justiceiros”, em São Paulo, e depois expandida para todo o país através da formação de milícias (MISSE, 1999).
No entanto, o ordenamento jurídico é o mais interessante para os moradores dos bairros populares, por ser o grupo social mais interessado em utilizar a lei oficial para fazer garantir os seus direitos, quase sempre ameaçados. Essa difícil busca por justiça é muito mais uma experiência cotidiana do que uma garantia para os moradores, por pura necessidade. Dessa forma, outras instâncias, como as associações comunitárias, passam a ser percebidas como complementares àquelas estatais que (pouco) funcionam (FELTRAN, 2010).
Essas tensões sociais alimentam ações de “combate ao crime” também por parte de moradores, amparadas pela complicação de se encontrar a justiça formal e suas ações seletivas nas comunidades. Essa necessidade de “instâncias extralegais” (Op. cit., 2010) poderia ter um correspondente em Salvador, no período inicial do narcotráfico dos anos 1980, que foi o linchamento apontado por Conceição (2015). Outras práticas extralegais do processo de violência urbana estariam ligadas à comercialização da cocaína (em 1990, nas cidades norte-nordestinas, grifo nosso), que impulsionaram os índices de violência urbana aos padrões atuais (MISSE, 1999).
[1] PROUDHON, Pierre-Joseph. “A guerra e a paz”. Nº 9. São Paulo: Verve, 2011. Pp. 23-71.
CHEGADA DAS NORMATIVAS
DE “GUERRA” AO BRASIL
Falamos do tratamento da Segurança Pública enquanto “guerra” no Brasil, então precisamos explicar como esse conceito chegou ao país e o porquê. Encontramos em Wacquant (2003) que o comportamento estatal de controle e de fechamento de territórios, composto por estigma, coação e segregação institucional, levou à narrativa de “combate ao crime”. A difusão dessas noções de estilo estadunidenses alcançou a América Latina, segundo Wacquant (2003), como um elemento de circulação internacional de política pró-mercado e punitivista das pessoas de menor renda.
Essa “tolerância zero” em bairros populares reprimiu as “pontas do crime”, principalmente a parte mais vulnerável e visível do tráfico de drogas[1] e os chamados “crimes de rua” (sobretudo roubos e furtos, praticados por infratores de menor renda), mas raramente os “crimes de colarinho branco” (não violentos, mas financeiramente motivados, cometidos por profissionais de negócios e funcionários públicos).
No âmbito internacional, essas práticas foram influenciadas, fundamentalmente, por projetos conservadores dos países capitalistas centrais, liderados pelos Estados Unidos. No entanto, essa abordagem assumiu lugar de destaque também em outros lugares com tradição de práticas pacíficas e garantia dos direitos humanos, como França, Inglaterra e Canadá. Muitas dessas violações nos países desenvolvidos foram motivadas pela presença de “estrangeiros, negros e pobres”. Já em outros países, como Brasil e África do Sul, pela longa tradição fundada na colonização que, historicamente, desumanizou e criminalizou as pessoas negras, como veremos sobre o racismo.
Essa “tolerância zero” (WACQUANT, 2003) foi concebida enquanto projeto planetário de Segurança Pública, contra pessoas “pobres”, negras, com baixo capital educacional, imigrantes e desempregados, tendo na polícia de Nova York o seu marco de fundação, a partir dos anos 1990 (REIS, 2005). Isso fez parte, ainda, de um outro projeto mais amplo que estava em curso, a “guerra às drogas”, implantado pelo presidente norte-americano Richard Nixon (mandato de 20 jan. 1969 a 9 ago. 1974).
No entanto, para introduzir esse cenário, temos que revisitar o passado. Segundo Ivete Santos Oliveira (2016), o primeiro marco regulatório às drogas no mundo foi decorrente das Guerras do Ópio, envolvendo China e Inglaterra (1839-1842 e 1856-1860), que culminaram com o tratado de Xangai, ou a Convenção Internacional do Ópio, em 1912. Outro marco importante dessa política, foi a Lei Seca dos Estados Unidos, que proibia a fabricação, o transporte e a venda de bebidas alcoólicas em todo território estadunidense, no período entre 1920 e 1933.
Os argumentos para essa proibição foram os graves efeitos sobre a saúde dos cidadãos e a degradação social provocada pelo seu uso. Embora, inicialmente, contasse com o apoio da população, a Lei Seca norte-americana não impediu o aumento do consumo de bebidas, a expansão do seu comércio ilegal, o enriquecimento do “crime organizado”, o aumento da corrupção e a explosão da violência urbana (SANTOS-OLIVEIRA, 2016). Tais desdobramentos fizeram com que essa lei fosse revogada em 1933.
O que se verificou ao longo século XX foi que, apesar de tentativas de regulamentação e proibição no mundo, o consumo de drogas se expandiu, movimentando enormes somas e criando mercados mais específicos, que atravessavam fronteiras (SANTOS-OLIVEIRA, 2016). Nesse cenário, percebeu-se que medidas adotadas foram centradas em repressão e proibição, empreendendo “guerra às drogas”, o que nunca se mostrou eficaz, seja por seu alto custo ou por não contemplarem especificidades dos mercados e demais fatores envolvidos, tendendo a criminalizar grupos sociais específicos, tornando-os ainda mais vulneráveis (MISSE, 1999).
Voltando à “guerra às drogas” norte-americana dos anos 1970, segundo Olliveira (2016), John Ehrlichman, então chefe de política doméstica do presidente Nixon, admitiu ao jornalista Dan Baum, em 1994, o teor racista da política de drogas norte-americana, ao afirmar:
"Na campanha presidencial do Nixon, em 1968, e depois na Casa Branca, nós tínhamos dois inimigos: a esquerda antiguerra e as pessoas negras. Entendeu? Sabíamos que nós não podíamos criminalizar quem era antiguerra ou negro, mas convencendo a população a associar hippies à maconha e negros à heroína, e depois criminalizando fortemente os dois, poderíamos desestabilizar ambas as comunidades. Poderíamos prender seus líderes, invadir suas casas, impedir suas reuniões e caluniá-los todas as noites nos jornais noturnos. Sabíamos que estávamos mentindo sobre as drogas? Claro que sim" (BAUM, 1994, apud OLLIVEIRA, 2016, on-line).
Essa política, por sua vez, fazia parte da Southern Strategy (Estratégia Sulista), uma manobra eleitoral do Partido Republicano, de Nixon, para aumentar o apoio político entre os eleitores brancos do Sul dos EUA, tendo como apelo o racismo contra afro-americanos no final dos anos 1960. Assim, à medida que o movimento pelos direitos civis aprofundava as tensões raciais no Sul dos EUA, políticos republicanos desenvolviam estratégias para o realinhamento político com muitos eleitores brancos e conservadores no Sul (BOYD, 1970). Após eleito, em 1969, Nixon aplicou a “guerra às drogas” e isso se difundiu para a América Latina, alcançando o Brasil em 1980/90 (MISSE, 1999; WACQUANT, 2003; REIS, 2005).
Um dos principais argumentos para essa política, tanto nos EUA quanto no Brasil, foi o de que as drogas gerariam uma “epidemia” se não fossem fortemente combatidas (DIAS; GARÇONI, 2019). No jornalístico “The Intercept Brasil”, em conjunto com a Organização Não Governamental (ONG) Casa da Democracia, jornalistas revelaram que o governo brasileiro mantinha em sigilo, desde 2017, o 3º Levantamento Nacional Domiciliar sobre o Uso de Drogas (LNUD), pesquisa nacional que investigou o consumo de substâncias lícitas e ilícitas. O estudo feito pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) foi o maior sobre o tema, onde se ouviram mais de 16 mil pessoas em 351 cidades do Brasil. Porém, a Secretaria Nacional de Política de Drogas (SENAD), órgão do Ministério da Justiça (MJ) responsável por encomendar a pesquisa, decidiu engavetá-la com a alegação de que havia problemas metodológicos (Op. cit., 2019).
No entanto, o embargo teria outra razão: o resultado contrariou o governo Temer (2016-2018) e a sua política antidrogas, pois o levantamento mostrou, por exemplo, que 0,9% da população usou crack alguma vez na vida – um número que estaria longe de uma “epidemia”, segundo o próprio estudo. Lembrando que qualquer vício, segundo a psicanálise, está diretamente ligado à ocorrência de um problema psicológico ou familiar do adicto. Logo, como relatou Alves de Melo (2020, 23’), “essa é uma guerra que perdemos feio, porque se morre mais no combate às drogas do que no seu consumo”.
Em nossa temporalidade, estabelecida para o tráfico de drogas (1980-2020), pouco mudou com relação a essa conduta do governo federal e das polícias estaduais, mesmo após a Constituição (1988-2020), a não ser por iniciativas isoladas dentro das próprias polícias, como o PROERD[2] e outros programas destinados a jovens, mas que não eliminaram ações violentas das polícias, muito menos reduziram o narcotráfico. Em nossa contemporaneidade (2018-2020), o governo Bolsonaro fez piorar a política antidrogas, exaltando o caráter “guerreiro” das polícias e resgatando o contrassenso do “bandido bom ser bandido morto” (desde que esteja em bairro popular). Enquanto isso, um esquema envolvendo um militar da comitiva presidencial brasileira transportava 39 kg de cocaína em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB), do Brasil para a Espanha, em 2019, e isso teria ocorrido ao menos em sete ocasiões, segundo a Polícia Federal[3].
Fatos assim corroboram para que se persista por tanto tempo a “guerra às drogas” no Brasil. Isso se tornou notório também quando nenhum tipo de policiamento se torna eficaz suficientemente para deter o narcotráfico, pois a polícia nunca teve como agir em um ponto central – o desejo de usar drogas (CONCEIÇÃO, 2015). Enquanto existir a política do proibicionismo, existirá tráfico. Como exemplo disso, o álcool, “droga lícita”, mantém muitos acidentes de trânsito para confirmar que a sua legalização não resolveu o seu problema social, porém a “máfia” que se movia pela sua ilegalidade não mais existe (LIMA, 2011).
Talvez essa conduta governamental possa ser explicada porque a Segurança Pública, mesmo posteriormente às ditaduras latino-americanas (durante os anos 1960, 1970 e meados dos 1980), se preservou como antes e foi marcada pelo autoritarismo como matriz cultural, destacadamente no Brasil, Peru, Chile e Colômbia, onde se manteve quase inalterada, mesmo em mais de trinta anos de esforços institucionais (com sequestros de Estado, torturas, atentados à mão armada e desaparecimentos de corpos)[4] (REIS, 2005; NEVES-SILVA, 2020).
O principal avanço nesse aspecto talvez tenha sido a Polícia Comunitária, originária do Chile e implementada em diferentes países latino-americanos. O seu objetivo foi o de aumentar a presença da polícia na rua. Portanto, as cidades foram divididas em quadrantes, cada um com uma delegacia de polícia e uma unidade policial (geralmente militar) responsável pelas abordagens e necessidades específicas da área (REIS, 2005). Isso não incluiu, necessariamente, uma mudança na estrutura da força policial e da sua organização interna e subcultura (GLEBBEEK; KOONINGS, 2015), mas uma armadilha, ou seja, com “ilhas de privilégios” de competências dentro de uma instituição que continuava sobrecarregada e subfinanciada.
NOTAS
[1] Sobre essa repressão das “pontas” do tráfico, segundo Pedro Ganem (2016), era bastante complicado diferenciar o traficante do usuário de drogas na prática penal brasileira. A Lei de Tóxicos (N.º 11.343/06) especificava práticas que podiam tipificar tanto o tráfico quanto o uso, e cuja diferenciação ocorria pela quantidade de substância apreendida, local e condições em que se desenvolveu a ação, circunstâncias da prisão e conduta e antecedentes do agente. Segundo o autor, eram critérios que possibilitavam, via de regra, a caracterização do “rico” como usuário e do “pobre” como traficante, por se tratarem de condições que dependiam muito da discricionariedade do policial (incluindo todos os seus preconceitos). O “pobre”, quase sempre flagrado em “periferia”, perto de alguma boca de fumo, com certa quantidade de dinheiro no bolso (muitas vezes do trabalho informal) e, ainda, com “passagem pela polícia”, mesmo quando “menor” (dadas as abordagens frequentes a moradores de “periferia”), estava em cenário “propício” para a tipificação de tráfico, ao invés de consumo (GANEM, 2016).
[2] Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência, baseado no DARE, programa educacional americano criado pela Professora e Psicopedagoga Ruth Rich, em conjunto com o Departamento de Polícia da cidade de Los Angeles, Estados Unidos, em 1983.
[3] RODRIGUES, Fernando. Diretor de Redação. “Militar traficou cocaína em avião da FAB ao menos 7 vezes, diz PF”. Poder360. 31 maio 2021. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/justica/militar-traficou-cocaina-em-aviao-da-fab-ao-menos-7-vezes-diz-pf/>. Acesso em: 10 jun. 2021.
[4] Como no caso Evandro, desaparecido em Guaratuba, no Paraná, em 1992, onde réus levados à Justiça tiveram suas confissões obtidas mediante tortura por policiais-militares que investigaram o caso paralelamente à Polícia Civil, devido à pressão política. Nunca o caso foi elucidado, mesmo após o maior julgamento do país, em 2004.
VIOLÊNCIA LETAL URBANA E RACISMO
Vimos que, nos bairros populares do Brasil, em geral, as estatísticas de violência letal urbana recaem sobre a população jovem, masculina e negra. Embora isso não configure uma relação absoluta, soma-se à estigmatização e à criminalização da “pobreza” sobressalente nesses territórios. Ademais, precisamos tratar da participação estrutural do racismo nesses processos, tanto na associação genérica de bairros populares ao crime violento quanto na constituição, certamente, de uma população-alvo.
Então, novas perspectivas para a compreensão dos conflitos ditos “guerra” foram necessárias para politizar essa análise, envolvendo o debate sobre desigualdade econômica[1] (GRILLO, 2019), vulnerabilidade, risco à violência letal e uma atenção maior ao racismo. Portanto, retomamos a discriminação racial, base ideológica do colonialismo brasileiro de cinco séculos (sobretudo quando o dominador foi o europeu, e o dominado, o africano).
Em caráter científico, o racismo implantou o preconceito e a discriminação com base em percepções sociais pautadas em diferenças biológicas entre os povos (MACEDO, 2014). Contudo, essa ideia de diferenciação repercute até hoje nas relações sociais, o chamado “racismo estrutural”[2].
O racismo atravessa bases discursivas que produzem Política de Segurança, portanto, formando uma conjunção que “contribui para um desmembramento perverso em suas instâncias institucionais, políticas e sociais, inserindo nos cálculos e estratégias de poder, corpos masculinos, periféricos e negros” (CALAZANS; NETO, 2017, p. 2). Essa dissolução das instituições forma uma estrutura do racismo intitulada “institucional”[3].
Acerca das estatísticas de VL, “os corpos de sujeitos negros são inseridos nos cálculos estatísticos e paradoxalmente excluídos sócio e biologicamente do tecido social” (CALAZANS; NETO, 2017, p. 1). É dessa forma que a categoria “raça” aparece na Política Pública de Segurança efetivada nos bairros populares. Nesse cenário de crise, mortes e abandono, se pressupõe necessária uma crítica às instituições do Estado, apontando para a existência de mecanismos de gestão da vida[4] e da morte[5], que guardam similaridades com um regime de exceção.
No entanto, a experiência histórica brasileira remete a considerar a herança colonial da Diáspora negro-africana[6] como elemento fundamental para compreender as relações na formação social, cultural, política e jurídica do país. Nesse sentido, o racismo é um ponto de convergência entre os conflitos sociais, constituindo-se como fenômeno estruturante, como dissemos, para a compreensão das tensões entre Estado e população (Op. cit., 2017).
Assim, acreditamos que o racismo opera em bairros populares atingidos pela VL urbana com estigmas de raça e classe, sobrepondo-se à cidadania e à ordem institucional-legal. Essa narrativa de estigmatização racial também é objeto de crítica como um “Estado Penal”[7] (WACQUANT, 2003), ou seja, um governo punitivista, seja pelo encarceramento, seja pela morte.
Nessa perspectiva da ação e da omissão estatal pelo racismo (fazer matar e deixar morrer), a letalidade policial e a baixa qualidade dos registros das mortes em confrontos com a polícia, evidenciam que esses falecimentos, de alguma forma, são menosprezados. “Não importam, porque a polícia cumpre o seu papel como protetora dos cidadãos, matando traficantes que, ao supostamente entrarem em resistência, confirmam a própria qualificação como bandidos” (BEZERRA, 2014, p. 91), como foi no episódio envolvendo a morte de 29 pessoas no bairro carioca de Jacarezinho, em 2021.
O principal exemplo dessa presença estatal na violência, segundo Goulart (2019), é o da Segurança Pública (em operações militares) agindo sobre o espaço urbano precarizado, assemelhando-se à ideia de “contra-insurreição” (conceito previsto no Manual de Operações Militares das Forças Armadas Norte-americanas[8] como Counterinsurgency, 2006).
Assim, o urbano pode ser usado também como dispositivo de violência de Estado, na medida em que a Política Urbana ganha contornos de Política de Segurança Pública, marcada pelo controle territorial nas cidades e uma “política da ordem” (IVO, 2019a), ao invés de uma administração de conflitos (BUTLER, 2020).
Tal discurso “de ordem” se preocupa com a violência urbana, mas, de certa forma, diz que o oprimido a mereça (ŽIŽEK, 2014). Assim, o último estágio desse racismo, a eliminação de corpos negros, alimenta empreendimentos genocidas que foram fundados no desejo de extermínio desses segmentos (FLAUZINA, 2014). Entende-se, então, por “genocídio”, “quaisquer atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tal como o assassinato de membros”, pontua Flauzina (2014, p. 121).
Em nossas temporalidades, tráfico de drogas (1980-2020) e tratativa de “guerra” na Segurança Pública (1988-2020) deram continuidade e esse processo genocida, ainda que houvesse redemocratização e governos considerados mais progressistas, mas com base de apoio de centro-direita (Lula e Dilma), de 2002 a 2016.
No entanto, vozes dissonantes dessa prática puderam ser ouvidas, como na reivindicação contra a violência urbana, segundo Maricato (2014), nas manifestações nacionais de junho de 2013, onde a questão das cidades foi recorrente. Entretanto, além da “esquerda” indignada com a violência urbana, foi também às ruas uma “elite branca”, conservadora, a favor do “genocídio negro” nas “periferias” (SAKAMOTO, 2014) sob um discurso punitivista e reacionário ao aumento dos índices criminais, sobretudo em se tratando de crimes contra o patrimônio.
Dentro dessa temática do “corpo matável”, dois problemas de Segurança Pública representam o descaso com pessoas negras diante da sua morte violenta:
"A Polícia Militar é a responsável pela verificação da existência do fato, por ser ostensiva. É ela quem vai até o local informado fazer a constatação de que realmente há um morto. Ela deverá informar à Telecom, a qual, por sua vez, deve entrar em contato com o plantão do DHPP, responsável pela abertura da ocorrência [...] Constam, no portal oficial (da SSP/BA) as seguintes informações: nome da vítima, sexo, idade e local onde o corpo foi encontrado. Ademais, cabe frisar a ausência da variável “cor” nas tabelas (dado que fica recluso na secretaria – grifo nosso)" (SILVA-FERREIRA, 2017, pp. 105-107).
Outro ponto importante destacado foi a ausência da definição de critérios raciais nas estatísticas, além da inexistência de cursos de formação para policiais nessa área. Esses elementos parecem contribuir, de maneira decisiva, para haver mais de 20% de vítimas de homicídios sem identificação de cor da pele na SSP/BA, em 2017, embora o Índice de Vulnerabilidade Juvenil (IVJ), de 2012, mostrasse que o risco de ser vítima de violência letal urbana estava diretamente relacionado à cor da pele e à juventude (SILVA-FERREIRA, 2017).
Ademais, esse cenário pouco mudou com relação à nossa contemporaneidade (2018-2020), quando pauperização e crise econômica persistiram, desde 2014, além da ascensão da extrema-direita no país (intensificando discursos armamentistas e punitivistas), bem como uma pandemia de coronavírus, iniciada em 2020, que não cessou o narcotráfico, tampouco as intervenções policiais em bairros populares, tornando ainda mais difícil a adoção de políticas de redução de violência letal a jovens negros.
NOTAS
[1] Um levantamento da desigualdade de renda, feito pelo IBGE (2018), apontou que, no Brasil, os 10% mais “ricos” tinham renda 18 vezes maior do que os 40% mais “pobres”. No mesmo estudo, em Salvador, essa diferença chegava a mais de 34 vezes: os 10% mais “ricos” tiveram rendimento médio de R$ 8.895,00, enquanto os 40% mais “pobres” tiveram média de R$ 280,00. Foi a maior diferença entre as capitais brasileiras (SILVEIRA, 2018b).
[2] Trata-se de um conjunto de práticas, hábitos, situações e falas embutido em nossos costumes e que promoveu, direta ou indiretamente, a segregação e o preconceito racial (PORFÍRIO, Francisco. “Racismo”. Brasil Escola. Sociologia. 2020. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/racismo.htm>. Acesso em: 26 out. 2020). Segundo Velame (2020, on-line), “o problema (do racismo) começa pelas mentes e pelo nosso perverso racismo do branqueamento e da ‘paleta de cores’”, referindo-se ao processo de miscigenação da população brasileira com a vinda de imigrantes europeus, política proposta pelo Estado brasileiro após a Abolição, no início do século XX, que gerou o racismo baseado no tom da pele (colorismo), e não apenas na dicotomia negro/branco, como ocorre nos EUA.
[3] Seguindo Elias Sampaio (2005) e Vilma Reis (2005, p. 68), o “racismo institucional” se configurou como “o fracasso coletivo de uma organização em prover um serviço apropriado e profissional para as pessoas, por causa de sua cor, cultura ou origem étnica”. Portanto, “pode ser visto ou detectado em processos, atitudes e comportamentos que totalizam em discriminação por preconceito involuntário, ignorância, negligência e estereótipos racistas, que causa desvantagem às pessoas de minorias étnicas” (REIS, 2005, p. 68).
[4] Para Foucault (2005), o poder esteve sempre associado ao saber, que emanou de diferentes direções, pessoas e instituições. Portanto, esse poder é a força que regula as populações, e não mais somente o indivíduo, o que o autor chamou de “biopolítica”.
[5] Mbembe (2016) escreveu que discursos utilizados para validar as políticas de segurança sobre populações podiam reforçar estereótipos, segregações, inimizades e até mesmo o extermínio (“genocídio”, segundo Flauzina, 2014) de determinados grupos. Assim surgiu o termo “necropolítica”, como questionamento se o Estado possuía ou não “licença pra matar” (pena de morte), tendo no racismo uma “condição de aceitabilidade” (morte sem pena) vinda de um discurso de ordem.
[6] Salvador foi a segunda cidade do Brasil Colonial que mais recebeu escravizados em seus portos (mais de 1,5 milhão de pessoas), atrás do Rio de Janeiro (mais de 2,2 milhões de pessoas), dos séculos XVI ao XIX, que vieram para trabalhar em diversas funções, como no Ciclo do Açúcar (sobretudo no Recôncavo Baiano) e no Ciclo da Mineração, onde foram enviados para outros locais do interior da colônia, como Minas Gerais (GOMES, 2019).
[7] Wacquant (2003) questionou a emergência do “Estado Penal” no Ocidente, sobretudo nas Américas (entendemos EUA e Brasil), no sentido do exponencial aumento do número de presos a partir dos anos 1980.
[8] O Manual foi composto pelo FM 3-24 (US Army Field Manual) e pelo MCWP 3-33-5 (Marine Corps Warfighting Publication), constituindo uma mesma publicação, o Counterinsurgency (Fonte: PINHEIRO, Álvaro de S. “O Novo Manual de contra-insurreição dos EUA”. DesesaNet.2007. Disponível em: <https://www.defesanet.
com.br/defesa/noticia/753/O-Novo-Manual-de-CONTRA-INSURREICAO-dos-EUA/>. Acesso em: 19 nov. 20).
QUESTÃO DO JOVEM: “ETHOS GUERREIRO” OU FORMA DE EXPRESSÃO?
Com relação ao comportamento do jovem que se envolveu com a criminalidade e, muitas vezes, também por isso, se tornou vítima da violência, há duas teorias levantadas nesta pesquisa. A primeira, a do “ethos guerreiro”, foi desenvolvida por Zaluar (1999, 2007). Nessa linha, pensa-se haver no jovem uma disposição para matar e morrer, aparecendo para ele como sinal de coragem, ainda que para os demais moradores isso seja algo covarde e negativo (ZALUAR, 1999). Acerca disso, trouxemos um caso de Salvador como exemplo, o “Mancha”:
"Mancha retornou ao bairro, iniciando um pequeno negócio de drogas, onde estava vendendo junto com um parceiro. Segundo informações, Mancha não estava respeitando as áreas dos outros e isso despertou o descontentamento de quadrilhas estabelecidas já há algum tempo. A situação estava dada, Mancha precisava morrer e essa necessidade resolutiva abriu espaço para que outras questões também fossem efetivadas. Diante da decisão de matar Mancha, um chefe de quadrilha do tráfico convocou os adolescentes que andavam desejando mostrar o seu valor e integrar o seu grupo, e lhes disse: 'Querem mostrar disposição? Vão lá e matem o cara!'” (CONCEIÇÃO, 2015, p. 69).
Muitos dos jovens que estão no tráfico não possuem necessariamente “sede sanguinária”, mas se mostram determinados a cumprir ordens, pois ali é o espaço da “masculinidade desenfreada”. Assim, a violência concebe a visibilidade social a esses jovens (CONCEIÇÃO, 2015), um verdadeiro “ethos guerreiro”, como relata Zaluar (1999, 2007), onde as ações policiais arbitrárias e indiscriminadas, ao contrário de inibirem, servem de alimento para tal “revolta” e adesão ao crime.
No entanto, há discordância, com uma crítica à ideia de condição pessoal para o crime, na qual “os autores estão longe de cair nas armadilhas de uma valorização ingênua de um ethos guerreiro” (TELLES, 2019, p. 524). De acordo com Dal Molin (2011), na verdade, há um paradoxo da juventude que se envolve com o “crime organizado”, onde é, ao mesmo tempo, excluída pelos processos de segregação social e incluída pela atuação nas redes sociais. Além disso, o jovem, que estava na tutela do Estado durante todo o século XX, passou a ser, nos anos 1980, capturado pelo consumismo e pelo pessimismo da vida, bem como nos anos 1990 passou por uma superexploração comercial, da qual foi obrigado a participar, mesmo que recorrendo ao crime (lembrando que se desenvolvia o narcotráfico no Brasil nesse período).
Todavia, o mercado de trabalho não absorveu esse jovem consumidor (Op. cit., 2011) e duas linhas de autores principais seguiram com sua hipóteses: (i) Norbert Elias (1998), apud Alba Zaluar (1999, 2007), com o “ethos guerreiro”; (ii) Pós-estruturalistas e Luiz Eduardo Soares (2019), com uma “forma de expressão juvenil”.
Essa segunda linha de pensamento vê no jovem que pratica crimes uma “forma de expressão”, que poderia ser persuadida do contrário a partir da sua inserção em outros meios (cultura e esporte, por exemplo, como mostraram algumas iniciativas a partir da introdução de equipamentos e instruções desportivas em bairros populares pelo Brasil). Dal Molin (2011), portanto, concluiu que há multiplicidade de fatores que torna a categoria “jovem” um objeto complexo.
Esses jovens armados provocam uma sensação de insegurança e medo nos moradores, bem como o possível desejo latente da comunidade de que deveriam ser exterminados (FERREIRA-SANTOS, 2007). Esse sentimento pode mostrar como as drogas e suas externalidades mudam relações, valores e elementos de sociabilidade tradicional, quebrando “laços de solidariedade” entre moradores, capazes de superar o individualismo e a desigualdade social (BUTLER, 2020b). Concomitantemente, se institui uma “sociabilidade violenta” (MACHADO DA SILVA, 2004, 2010).
Segundo Ferreira-Santos (2007) o período etário dos 13 aos 16 anos parece ser o marcador da entrada na trajetória de marginalização, identificado pelo início do consumo de drogas. Por isso, “os ‘cabeças’ (chefes) não ligam se alguém quer sair mesmo, pois o número de pessoas (jovens) desejando entrar é alto” (CONCEIÇÃO, 2015, p. 74). Assim, Lima (2011) descreveu o ciclo do jovem de bairro popular que se envolve com o tráfico e se torna alvo da VL: (i) abandono escolar para ajudar no sustento da família; (ii) envolvimento com drogas; (iii) dívidas com “traficantes” e pequenos delitos; (iv) venda de entorpecentes para pagar as dívidas, aumentando a gravidade dos delitos; (v) envolvimento em conflitos violentos, inclusive com a polícia.
TRÁFICO DE DROGAS EM SALVADOR
(1980-2020)
Continuamos apontando os agentes das violências letais, teorizando, a partir de agora, dois dos principais (tráfico de drogas e polícia) e suas relações, para antecedermos a uma investigação dos bairros. Começamos pelo tráfico de drogas, mas, antes de entrarmos nesse assunto, reforçamos a utilização do termo “facção” neste trabalho correspondente a “crime organizado” (RAMOS DE SOUZA, 1998; OLIVEIRA, 2003; DAL MOLIN, 2011; PERES, 2012; MINGARDI et al, 2016; SANTOS-OLIVEIRA, 2016; IVO, 2019b; NEV/USP, 2019; PAIM et al, 2019).
Para Schabbach (2011), “facções” são grupos organizados que reúnem, principalmente, adultos com trajetória delitiva, funcionando como organizações de atividades ilícitas, hierarquizados e permanentes, com liderança estável, impondo-se através de força e/ou de habilidade criminal, cujo impulso a uma atividade extremamente lucrativa é o narcotráfico.
Foi a partir da década de 1980 que o tráfico de cocaína (seguido do crack nas décadas seguintes) começou a se materializar no Brasil e, a partir da década de 1990, houve o seu crescimento e participação nos espaços urbanos (CONCEIÇÃO, 2015).
Foi também nessa época que uma política “narcoterrorista” norte-americana desdobrou suas ações de combate ao “crime organizado” para territórios produtores de droga[1] fora dos EUA, demarcando presença e influência estadunidense em toda a América do Sul, inclusive no Brasil, via assistência militar e financeira para a repressão a entorpecentes (IVO, 2019b), ou no termo “guerra às drogas” (MISSE, 1999; CONCEIÇÃO, 2015; HIRATA; GRILLO, 2019).
Em Salvador, o mercado de drogas passou a se organizar de maneira intensiva também após a chegada da cocaína[2] e do crack (e toda sua lucratividade), onde antes a maconha era o produto inicial, mudando para o modelo de “empresa criminal” (LIMA, 2013, apud SANTOS-OLIVEIRA, 2016; CONCEIÇÃO, 2015). Entretanto, Machado da Silva (2010) julgou não ser esse processo necessariamente uma “empresa”, mas uma subjugação criminosa, uma rotina no crime. Em ambos os casos, os mercados mudaram completamente pela droga vendida, resultando em disputas por territórios e mortes.
Quando as primeiras pessoas vendiam maconha no bairro popular de Salvador, ainda não havia a consolidação do operador do tráfico, era apenas o bandido, que não o fazia como única atividade, além de muitos grupos fornecendo para mesma clientela, até os anos 1990 (CONCEIÇÃO, 2015).
Em território nacional, a partir do tráfico de drogas, as rivalidades e as quadrilhas de bairro foram substituídas por novos grupos e redes criminosas (LOURENÇO, 2014). Foi nesse mesmo período que ocorreu, no bairro popular de Salvador, a consolidação de um grupo (ou grupos) à frente do tráfico (facções), semelhante ao que ocorria com aquelas organizações nas prisões, passando de uma fase fragmentada para um processo de concentração do poder (CONCEIÇÃO, 2015) e territorialização, diante da ideia de demarcação, de fronteira (FELTRAN, 2010).
Essa conexão entre espaço urbano e modus operandi das facções seguiu um padrão espacial organizado em interesses econômico-criminosos a nível local, precisando estabelecer um controle territorial e social em espaços fraturados e, ao mesmo tempo, reivindicando “proteção” da vizinhança[3] e usando da violência contra rivais, policiais e moradores (GLEBBEEK; KOONINGS, 2015).
Ademais, isso foi encoberto pelo discurso falacioso da “periferia ser o local de origem dos marginais” quando, na verdade, os residentes são as principais vítimas da tomada do bairro popular por criminosos (ESPINHEIRA, 2008).
Dessa maneira, em nosso estudo das estatísticas criminais da Orla Atlântica de Salvador, vimos que a maioria das violências letais (VL) tratava-se de homicídios dolosos praticados por civis (HDPC) e, desses, havia um grupo majoritário desses crimes que poderiam ter relações com o narcotráfico. São crimes que “possuem especificidades que ameaçam o espaço público mais do que outras formas de crime” (OLIVEIRA, 2003, p. 246), pois se tratam de uma outra forma sociabilidade tomando corpo.
Para Grillo (2019), o tráfico de drogas pode acontecer de duas formas, que levam em conta tanto a classe social quanto o espaço público. Primeiro, em pontos fixos (ou “na pista”), geralmente localizado na classe média e alta em seus condomínios residenciais, com preferência às drogas sintéticas[4] e de maior valor de mercado. Segundo, aquele das “bocas” (dos pontos de venda), localizados nas “favelas” e permanecendo clandestino (MACHADO DA SILVA, 2010), com preferência às drogas semissintéticas.
O tráfico descrito por Grillo (2019) como “na pista”, não possui ações para além do comércio de drogas, pois não há vácuo de poder ou de autoridade nesse processo. Contudo, no bairro popular, onde o tráfico é baseado em território, há muitos vácuos deixados pelo Estado e historicamente preenchidos pelo crime (CONCEIÇÃO, 2015)[5].
A perda de território do tráfico parece fomentar a dinâmica letal do comércio de entorpecentes, também chamada “mudança no comando”. Essa transferência de território geralmente é precedida de uma disputa violenta, onde pessoas “novas” no bairro começam a circular, armadas, e as “bocas” têm o número de “guaritas” (seguranças) reforçado. “Os indivíduos mais próximos da antiga liderança encontram-se, em sua maioria, refugiados em casas dentro do próprio bairro à espera das ações do líder preso, outros já conseguem sair do bairro e também aguardam ordens” (CONCEIÇÃO, 2015, p. 111).
Dessa forma, o encarceramento e a punição influem diretamente no contexto do tráfico e do homicídio doloso da capital baiana (MARX et al, 2016). Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2020), das mais de 775 mil pessoas mantidas presas no Brasil, em 2019, 66% eram negras (um aumento de 8% com relação a 2005). Para Telles (2009), as interfaces da prisão com o seu “fora” e as territorialidades urbanas, certificam que as penitenciárias afetam as cidades nas quais são implantadas, redefinindo dinâmicas sociais e urbanas locais, como no caso do presídio da Mata Escura, em Salvador.
Para Mingardi et al (2016), a realidade prisional de oito estados brasileiros é mais grave, na medida em que mais de 50% da população carcerária (2013-2014) não era julgada: Sergipe com 70,9%; Piauí com 63,6%; Pernambuco com 59,1%; Amazonas com 56,6% e Bahia com 54,9%. A respeito dessa população das prisões, segundo Luiz Eduardo Soares (2019), o Brasil prende muito pouco em se tratando de homicídio doloso e muito quando em tráfico de drogas, principalmente depois da mudança na Lei de Drogas, em 2006, que deixa de existir a distinção pela quantidade de droga apreendida entre “usuário” e “traficante”, dependendo a acusação de decisão policial.
Lourenço (2014) fez um panorama do encarceramento na Bahia, de 1990 a 2012, até o início da atual Política Estadual de Segurança Pública. Nesse estudo, foram apontados a criação da Secretaria Estadual de Administração Penitenciária e Ressocialização – SEAP/BA, a alta concentração de presos provisórios em delegacias, a interiorização do sistema (ainda em progresso em 2020), o aumento do encarceramento e a transformação do perfil dos internos. Segundo Lourenço (2014), de 2005 a 2010, o aumento dos detentos baianos por tráfico de drogas foi de 265%.
As internas presas por tráfico passaram de 85, em 2005, para 312, em 2010, e isso representou um aumento de 367,1%. Ao contrário da hipótese verificada em São Paulo, no período de 1996 a 2005, na qual o aumento do encarceramento redundaria na redução dos homicídios dolosos, o que se observou na Bahia foi o contrário (LOURENÇO, 2014).
Para Lourenço (2014), uma das hipóteses desse fenômeno era o alto número de presos por tráfico de drogas, o que pôde explicar quase 70% da variação da quantidade de pessoas assassinadas no estado, no período de 2005 a 2010. O autor apurou, através de declarações de delegados de polícia de Salvador e Região Metropolitana, que a prisão de operadores do tráfico fomentou a disputa por pontos de venda de drogas, porque perderam suas lideranças.
Além do que, segundo Lourenço (2014), a maioria das pessoas presas estava em regime provisório e em condições precárias nas delegacias, portanto, tendo ainda ligações com a rua e dando ordens para execuções.
Dadas as estatísticas de 2018-2020, desta pesquisa, mas só a respeito dos HDPC com suposta ligação ao narcotráfico, após declarações da SESP/BA sobre a autoria desses homicídios dolosos, pudemos concluir que esse fenômeno se manteve crescente, inclusive durante a pandemia de 2020, cujos indultados estariam, sob alegações da própria SEAP/BA, assassinando ou comandando assassinatos.
Outro variante dessa relação presídio-bairro é a ligação da pessoa jovem, de menor renda e negra, cuja imensa maioria nunca esteve envolvida no crime, mas sabe que, como tem mais chance de ser presa do que outros grupos sociais, precisa ter boa relação com a facção local no caso de uma eventual detenção, pois por seria assim tutelada na penitenciária (LESSING, 2018). Mais uma vez, o Estado servindo de transmissão do poder criminal da facção ao bairro.
A retomada do bairro popular pela facção, muitas vezes, se orquestra também dentro da penitenciária. Como definiu Lima (2013, apud CONCEIÇÃO, 2015) o chamado “período de refluxo” acontecia com hostilidade nas relações, quando o líder preso, querendo uma “conquista”, passa a conceder perdão a vários indivíduos por ele afastados anteriormente, bem como a formação de arregimentados para os conflitos (sobretudo adolescentes), nos chamados “bondes” (grupos de ataque e defesa, de pessoas armadas) – como ocorreu durante os conflitos no Engenho Velho da Federação, em 2020[6].
Ainda sobre essa retomada, segundo informações de policiais obtidas por Conceição (2015), os territórios com Bases Comunitárias de Segurança (BCS) eram os mais seguros para os operadores do tráfico estabelecidos, pois enfrentar dois oponentes (policiais da base e operadores locais) requeria uma dificuldade maior ao inimigo.
Outra dinâmica do narcotráfico, pensando-se no bairro popular como “o lugar do silêncio das leis” (CONCEIÇÃO, 2015), ou da “paz armada” (MACHADO DA SILVA, 2004), é o que se chama de “monopólio das armas”, onde fica totalmente vedada a posse e o porte de armas pelos moradores, bem como é comum a instituição de “toques de recolher” aos habitantes não envolvidos, criando um cenário de violência cada vez mais restrito ao “mundo do crime” (Op. cit., 2015).
Derivado dessa repressão criminosa, o “tribunal do crime” age com punições como forma de minimizar possíveis descontentamentos dentro do próprio narcotráfico e deste com os moradores, desmotivando delações, além do disciplinamento de condutas juvenis. Também em regiões onde o tráfico domina, não são raras as condenações de pessoas a deixarem o bairro, como forma de punição (CONCEIÇÃO, 2015), indo para lugares igualmente escolhidos pela facção.
Para Marx et al (2016), da mesma forma com relação ao “tribunal do crime” em Salvador, as desobediências são punidas com surras e até mesmo homicídio. Para Conceição (2015):
"O último elo da cadeia punitiva é a letal, ceifando a vida do indivíduo; a morte nesse sentido não é a finalidade, mas sim um meio de caráter resolutivo/punitivo [...] Quanto maior o nível de violência utilizada em uma morte, maior é a simbologia sobre ela, sendo assim, as mortes dos que são considerados inimigos, são feitas sempre que possível com armas brancas" (CONCEIÇÃO, 2015, p. 105).
Para Feltran (2010), os “tribunais do crime” possuem três níveis distintos. O primeiro, são os debates que deliberam sobre as “pequenas causas”, que podem ser resolvidos por uma “ideia” trocada de modo rápido. Segundo, a gravidade moderada, arbitrada pela consulta a outros “irmãos”, por telefone celular. Terceiro, os casos de vida ou morte, produzindo uma sentença consensual. Feltran (2010) demonstrou que essa regulação incide, mais radicalmente, na queda das taxas de homicídio em São Paulo (mas em Salvador, essa influência na taxa não foi observada).
As relações entre os agentes do homicídio doloso no tráfico de drogas sempre foram complexas. Mesmo uma percepção de que os moradores são meras vítimas do narcotráfico não daria conta da diversidade de acontecimentos, incluindo situações em que os operadores do tráfico são obrigados a negociar sua atividade com os habitantes, garantindo a coexistência entre o “mundo do crime” e o cotidiano (CONCEIÇÃO, 2015). Obviamente a “decisão letal” está nas mãos dos criminosos.
Em outro aspecto, visando a lucratividade, as facções de Salvador diversificam o seu mercado de entorpecentes e isso lhes traz uma nova organização estrutural, ainda mais verticalizada (LIMA, 2011). Embora algumas funções possam ser identificadas comumente nas facções do país, essa estrutura varia de acordo com cada organização criminosa.
Conceição (2015, p. 83) detalhou algumas delas, onde os “jóqueis” desempenham a função de vender as mercadorias da “boca”, normalmente ocupada por adolescentes, em sua maioria negros, “meninos que querem ser vistos como homens”. A retaguarda dos “jóqueis” é feita pelos “guaritas”[7], responsáveis pela vigilância das entradas do bairro popular. Os “amadores” (pessoas de fora da estrutura do tráfico) são diversos, mas principalmente aqueles que têm amizade com os operadores e ajudam no recebimento de drogas. Ao lado dos “guaritas”, que operam como olheiros, existem os “seguranças”, protegendo os pontos de venda e os arredores das casas dos “cabeças”. Os “braços-direitos”, também conhecidos como “cabeças”, são figuras de prestígio e confiança para o chefe do tráfico, desempenhando o gerenciamento das drogas, controle do armamento e planejamento, sendo o próprio chefe do tráfico um “cabeça”, geralmente com mais de 25 anos e longa “carreira” criminal. O papel de transporte é conhecido pelo “zig-zag”, muito desempenhado por mulheres, sendo que muitas delas (que fazem o “favor” de levar drogas para seus companheiros) recebem recompensas financeiras por esse serviço, pois sua presença no mercado de drogas é algo intenso (CONCEIÇÃO, 2015).
Outra dinâmica importante sobre o crescimento e o funcionamento do tráfico, é o comportamento de sua clientela, já que os consumidores que não moram no bairro popular o adentram, muitas vezes de carro, com o intuito de chegar à “boca”, algo que, contudo, está se enfraquecendo (CONCEIÇÃO, 2015). Um exemplo disso, é o período de pandemia do coronavírus, a partir de março de 2020, quando se diversificaram os modos de “entrega” da droga[8], aumentando a concorrência pelo produto e o acirramento entre facções.
A compra da droga pode ocorrer em variados momentos do dia, com vendas para a classe média chegando a alcançar mais de R$ 1.000,00 em uma única transação, geralmente para abastecer as festas nos condomínios ao redor do bairro popular, com alto grau de pureza da droga. Quando as dívidas extrapolam a capacidade de pagamento, o único modo de quitação é com a própria vida. Além disso, o valor devido é uma forma de ampliação dos lucros, pois é o credor que diz os juros a serem pagos, sem nenhum controle (CONCEIÇÃO, 2015).
Um dos fatores que leva à violência na venda de drogas, como apontou Bourgois (2010, apud CONCEIÇÃO, 2015), é que essa atividade continua a superar livremente qualquer outra forma de rentabilidade, seja legal ou ilegal:
"Cada granulado de pasta base de cocaína com bicarbonato, conhecido como crack, é vendido a R$ 5,00; as trouxinhas de maconha são comercializadas também a R$ 5,00, e por fim, a grama da cocaína é comercializada a R$ 25,00. Cada quilo de pasta base de cocaína é transformado em cinco quilos para a venda, desse modo, tem-se um produto com 20% de pureza [...] Com um braço-direito preso foi encontrado um caderno de contabilidade com um registro de ganho acima de R$ 30 mil em um só dia [...] Afora essas perdas eventuais para a polícia, houve até 2011 também pagamentos contínuos para algumas guarnições que podem alcançar R$ 40 mil ou mais em um único pagamento [...] No anseio de aumentar rendimentos, alguns chegam a acrescentar outros elementos à cocaína como forma de ganhar mais, como: analgésico, pó de giz e até mesmo naftalina" (CONCEIÇÃO, 2015, pp. 93-94).
Interessante verificar, ainda, como as relações do tráfico passam a ser menos (ou nem um pouco) violentas depois da “lavagem do dinheiro”, ou seja, quando o lucro é utilizado para fins alheios. Assim, o dinheiro movimenta não somente os negócios diretos do narcotráfico, mas também a economia do bairro como um todo, principalmente em aquisição de imóveis e organização de festas (CONCEIÇÃO, 2015).
Preparamos, inclusive, um Mapa de Porcentagem de violência letal por bairro e domínio de facções na Orla Atlântica de Salvador (2020), indicando conflitos e colocando também as localizações das Bases Comunitárias de Segurança (BCS), da Polícia Militar, buscando relações entre a presença policial permanente e uma suposta “pacificação” de facções, como foi apontado na literatura.
Utilizamos a porcentagem de violência letal no mapa, porque englobou os homicídios dolosos praticados por civis (HDPC) e as mortes provocadas por policiais (MPP), podendo-se fazer uma análise mais ampla. Assim, com base em referências jornalísticas, mídias independentes e postagens em redes sociais feitas pelos próprios grupos criminosos, destacamos os bairros que fazem parte da Orla Atlântica (OA) e colocamos no mapa os nomes de facções que dominavam cada território até o fechamento desta pesquisa (2020), bem como os conflitos que existiam entre esses grupos.
Vale lembrarmos que a Bahia, segundo o NEV/USP (2019), encontrava-se na situação de várias facções em conflito disputando o varejo de drogas, sob a influência da entrada de grupos criminosos nacionais, o Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV)[9].
Como vimos, com relação às facções nos bairros, a chegada de drogas e de armas se dava por meio de acordos entre as organizações criminosas, chegando por estradas e entrando na cidade de carro, pelas principais avenidas, como esquematizamos no Mapa de porcentagem de violência letal por bairro e principais avenidas da OA de Salvador.
Tivemos o objetivo aqui de mostrar a capilaridade dos corredores que ligam territórios dominados, mostrando os nomes das vias por onde chegam drogas, armas e consumidores e onde, de algum modo, deveriam se concentrar as operações para “barrar” esse comércio ilegal.
Sobre a obtenção de armas de fogo pelas facções, isso foi relatado por Santos-Oliveira (2016) como de extrema facilidade, pois as “simples”, como revólveres, podiam ser compradas em feiras livres ou através de pessoas que levavam até o comprador e, quanto às armas de maior poder, como pistolas, fuzis, escopetas, metralhadoras e granadas, podiam ser adquiridas através da polícia, das forças armadas ou de interceptadores do tráfico internacional. Essas armas de fogo têm papel fundamental no cenário do narcotráfico, porque estavam relacionadas diretamente às mortes e à reputação dos envolvidos, fomentando o ciclo da violência (SANTOS-OLIVEIRA, 2016).
O perigo dessas armas de fogo, dentro do bairro popular, inclui ainda suicídios e feminicídios, mortes por brigas interpessoais, roubo ou extravio de armas “legalizadas” e fator surpresa (pois a arma em ambiente urbano é um ótimo ataque, mas uma péssima defesa), vitimando inclusive policiais de folga, surpreendidos por emboscadas (RESK; CARVALHO, 2019).
De acordo com a CPI do Tráfico de Armas, 85% das armas apreendidas pelas polícias são de fabricação nacional (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2006). Por outro lado, um contingente de armas com alto poder de destruição é provido pelo tráfico internacional, passando pelos portos e fronteiras mal monitorados, acabando no “crime organizado” (MINGARDI et al, 2016).
França (2015) ilustrou a situação das armas por um estudo de Patrícia Rivero (2005), que estimou um maior desvio de armas para o crime, a partir da década de 1970, coincidindo com o aumento do tráfico de drogas no Rio de Janeiro, notadamente da maconha, e outro pico de crescimento na década de 1980, coincidindo com a entrada da cocaína no mercado. Não se pôde dizer que o tráfico de armas em Salvador ocorreu exatamente da mesma maneira do que no Rio, mas a lógica não foi incomum nas metrópoles brasileiras como um todo, onde houve altos índices de homicídio por arma de fogo, segundo França (2015).
Em março de 2020, por exemplo, observamos que a Polícia Federal (PF) cumpriu mandados de busca, apreensão e fez a prisões em quatro cidades da Bahia, durante a operação “Gun Express” de combate ao tráfico internacional de armas de fogo. De acordo com a investigação, suspeitos importavam, guardavam e transportavam armas e munições, distribuídas para outros estados do país. A polícia encontrou armas sendo transportadas dentro de compartimentos de carros, como tanques de combustíveis, por exemplo. Os pagamentos eram feitos por empresas de fachada para dar aparência lícita aos repasses, feitos por transferências bancárias (G1/BAHIA, 2020).
NOTAS
[1] Segundo o coordenador-geral de Polícia de Repressão a Entorpecentes da PF, Oslain Santana, o caminho que o oxi, a merla, a cocaína e o crack faziam para o Brasil, passava pelos principais narcoexportadores, Bolívia e Peru, enquanto a Colômbia produzia mais para os Estados Unidos e para o consumo interno (VILLA, 2011).
[2] Para o documentário The Business of Drugs (2020), Rodrigo Canales disse que havia 18,1 milhões de usuários no “mundo da cocaína” e, mesmo com o aumento da demanda, o preço se manteve estável, porque não era um mercado por concorrência simples, era por quem conseguia melhor atender os consumidores. Portanto, segundo Canales, uma analogia podia ser feita com o mercado de games, cujo valor não sofreu alterações por mais de 25 anos, não porque não houvesse aumento de tecnologia, mas porque se esperava o lançamento de um novo jogo, com o mesmo valor, em uma venda constante e garantida. “De onde eu vim, não se ganha o mesmo com um emprego lícito. Trabalho com poucos gramas para não ser pego, mas a venda é constante, porque quem compra não consegue parar” (THE BUSINESS, 2020, 3”) – a respeito da cocaína, por um operador do tráfico.
[3] Ver caso em Salvador: WENDEL, Bruno. “Comerciantes do Lobato pagam até R$ 100 por semana à facção para não serem mortos”. Correio 24 Horas. Salvador. 7 set. 2020. Disponível em: <http://www.correio24horas.com
.br/noticia/nid/comerciantes-do-lobato-pagam-ate-100-por-semana-a-faccao-para-nao-serem-mortos/>. 10/01/21.
[4] As drogas sintéticas foram aquelas produzidas a partir de uma ou mais substâncias químicas psicoativas que estimulavam ou deprimiam o sistema nervoso central (anfetaminas, LSD, GHB, ecstasy, anabolizantes, ice, quetamina, inalantes, efedrina, poppers etc.). Já as drogas semissintéticas foram produzidas através de drogas naturais quimicamente alteradas (crack, cocaína, cristais de haxixe, heroína, maconha “modificada”, morfina, codeína etc.) – DANTAS, Gabriela Cabral da Silva. Drogas Sintéticas. “Brasil Escola”. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/drogas/drogas-sinteticas.htm>. Acesso em 1 abr. 2021.
[5] A precocidade de muitos dos membros que compunham o mercado varejista (de drogas) na “periferia” foi um dos elementos que o distinguiu do mesmo comércio na classe média e alta. Enquanto que, na classe média e alta, percebia-se a maioria dos operadores na faixa etária jovem (18 a 29 anos), na “periferia”, a maioria ocupava a faixa da adolescência (10 a 18 anos), segundo Conceição (2015). Outro fato que diferenciava o tráfico realizado nas “periferias” daquele que ocorria na classe média e alta era a fama, pois, ali, havia um empenho pelo anonimato (GRILLO, 2019), pouco presente na “periferia”.
[6] MOURA, Gabriel. “Moramos no meio da guerra”, desabafam moradores do Engenho Velho da Federação. “Correio 24 Horas”. Salvador, 30 jun. 2020. Salvador. Disponível em: <https://www.correio24horas.com.br/notici
a/nid/moramos-no-meio-da-guerra-desabafam-moradores-do-engenho-velho-da-federacao/> Acesso:11 jul. 2020.
[7] “Contudo, os maiores riscos para os ‘guaritas’ são as incursões da polícia, eles são os que ficam mais próximos, pois são a linha de frente” (CONCEIÇÃO, 2015, p. 88).
[8] Segundo a revista ISTOÉ, em 21 ago. 2020, a PM, em Salvador, passou a monitorar e deter o chamado “delivery” da droga que, por conta do isolamento social causado pela pandemia, gerou a entrega disfarçada em caixas de entregadores, principalmente em direção aos bairros “nobres”. Ainda segundo a matéria, esse tipo de comércio ajudou a acirrar a disputa territorial de facções e entre o tráfico e a polícia, pois o “delivery” podia movimentar a clientela a outro fornecedor (Fonte: ISTOÉ. Homem é preso após ser flagrado fazendo delivery de maconha para bairros nobres de Salvador. “Geral”. 21 ago. 2020. Redação: ISTOÉ, 2020).
SEGURANÇA PÚBLICA: DESDOBRAMENTOS DE UMA “GUERRA ÀS DROGAS” (1988-2020)
Continuando a nossa investigação sobre os principais agentes da violência letal na Orla Atlântica de Salvador e as suas relações, debruçamo-nos sobre as mortes provocadas por policiais (MPP), ou seja, a estrutura que levou os policiais a engrossarem os índices de letalidade. Antes de entendermos o funcionamento da Segurança Pública, precisamos de uma definição para isso.
Para De Lima (2017, on-line), um bom conceito seria a “prevenção, investigação e punição de responsáveis por atos de violência e criminalidade e administração de conflitos para garantir direitos básicos da população para que ela possa exercer outros direitos da cidadania”. Segundo o autor, a lei brasileira não estabelece um conceito fechado, o que o difunde diversamente de acordo com o agente. Para o Estado, Segurança Pública é o combate de um inimigo interno (atualmente o tráfico de drogas), não envolvendo outras questões sociais. Assim, podemos destacar três palavras em De Lima (2017) que são importantes para essa investigação: “punição”, “administração de conflitos” e “cidadania”.
Importante destacarmos, além do conceito, o marco legal da Constituição de 1988 (CF/88) como início de nossa temporalidade da Segurança Pública. Para Ramos da Costa (2011), a ação da polícia antes de 1988 refletia um modelo operacional baseado na defesa do Estado e suas doutrinas, repressiva e não preventiva do crime, privilegiando o número de ocorrências atendidas, de prisões efetuadas e de armas e objetos aprendidos. Além disso, o Estado brasileiro sempre atribuiu as suas responsabilidades por deficiências na Segurança Pública à própria sociedade (ALVES, 2020), por exemplo, no artigo 244 da CF/88, em que “a segurança pública é dever do Estado, direito do indivíduo, mas RESPONSABILIDADE de todos” (grifo nosso).
Mesmo depois de 1988, continuou complexa a estrutura constitucional da Segurança Pública no Brasil. A Polícia Federal (PF), criada em 1944 para a Segurança Nacional, permaneceu atuando em todo o território do país, através de delegacias de PF. Abaixo, ficaram as Polícias Civis estaduais (com delegados de polícia, bacharéis em direito, e funções de Polícia Judiciária, ou seja, de investigadoras de infrações penais). Depois, continuaram as Polícias Militares estaduais – a quem cabia o policiamento ostensivo e a preservação da “ordem pública”, com prevenção e repressão ao crime (RUDNICKI, 2011), ao invés de uma administração permanente de conflitos sociais em uma aposta à não violência (BUTLER, 2020).
As Guardas Municipais vieram na sequência constitucional, atualmente em fase de expansão no Brasil, inclusive com o direito de utilizar armas de fogo. Ainda tiveram as Polícias Rodoviária e Ferroviária Federais, no texto de 1988, sendo que a segunda perdeu poder e competências ao longo dos anos (Op. cit., 2011). Ademais, está prevista, desde 1988, a segurança privada, representando, na prática, um contingente relevante de policiais, em especial, com atividades não legalizadas.
Nesse sentido, a Polícia Militar nunca foi um veículo para a redução substancial dos delitos, cabendo a sociedade como um todo fazer isso (RUDNICKI, 2011). Essa mesma polícia, que deveria ser apartidária e laica, acabou absorvida por conservadores e religiosos, diante do medo de que pudesse ser “esquerdizada”. Por isso, desde o último período ditatorial no Brasil, o pensamento progressista foi praticamente banido das instituições militares, inclusive com aposentadorias e exclusões daqueles que divergissem do conservadorismo (DEL-COLLE, 2019).
Nesse contexto, as PMs se tornaram a principal corporação policial do país, organizadas militarmente e auxiliares, em última instância, do Exército Brasileiro, nunca perdendo, portanto, seu vínculo belicoso. Em consequência, persistiram, desde o período anterior à Constituição de 1988, algumas das organizações policiais-militares com importante papel na repressão política e na montagem da máquina de exceção do Estado, como os batalhões de choque (DE SOUZA, 2014). Na Bahia, por exemplo, segundo o site do Batalhão de Choque estadual (BAHIA, 2020b), tal organização foi criada nos anos 1970, com uma estrutura bastante semelhante aos moldes de organização de Companhia de Infantaria do Exército e com missão de contraguerrilha.
No entanto, a complexidade dos novos problemas sociais e as novas identidades sociais (HALL, 2006) passaram a sinalizar para a polícia que não bastava a “ordem pela lei”. Teria que haver administração permanente de conflitos sociais, respeitando padrões éticos aceitáveis pela opinião pública e pelo Estado de Direito. Por isso, a partir da década de 1990, teve início um movimento, tanto no âmbito de corporações policiais, quanto de universidades, governos e sociedade civil, questionando a gestão policial (RAMOS DA COSTA, 2011).
Tanto no âmbito nacional, quanto na Bahia, houve documentos que indicaram o que fazer pela Segurança Pública a partir dessa nova abordagem, mas não explicitaram os mecanismos de como fazer, a saber:
(i) o Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP), de 2000, do Governo Federal;
(ii) a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências, do Ministério da Saúde (PNRMAV), de 2001 e;
(iii) o Plano de Ação para a Redução da Morbimortalidade por Causas Externas na Bahia (PARMCEB), da Secretaria Estadual de Saúde da Bahia (SESAB/BA), de 1998 (CORDEIRO et al, 2007).
Do PNSP, de 2000, surgiu o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) – Lei nº 11.530/2007 – e a Política Nacional de Segurança Pública, de 2011. O Pronasci representou um importante marco na concepção da Segurança Pública nacional, tendo como principais preocupações a prevenção, o controle e a “repressão da criminalidade” nas cidades “mais violentas” do país (CRUZ-SANTOS; PEREIRA-SANTOS, 2018).
De acordo o Ministério da Justiça (MJ), os eixos principais do Pronasci foram:
(i) formação e valorização dos profissionais de Segurança Pública;
(ii) reestruturação do sistema penitenciário;
(iii) combate à corrupção policial e;
(iv) envolvimento da comunidade na prevenção da violência. O Programa alcançou, até 2012, investimentos de R$ 6 bilhões, a serem aplicados nas regiões metropolitanas brasileiras “mais violentas”: Belém, Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Maceió, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Vitória, incluindo ações para resgatar jovens, entre 15 e 29 anos, que se encontravam em situação de risco (Op. cit., 2018).
Já a partir da Política Nacional de Segurança Pública, de 2011, surgiu o planejamento da pasta estadual da Bahia, o Plano Estadual de Segurança Pública (PLANESP, 2012-2015), com base em cinco propostas:
(i) tratar a Segurança Pública de forma transversal, articulada e integrada;
(ii) busca da redução dos índices de criminalidade;
(iii) dirimir a vulnerabilidade das comunidades com avaliação das ações de Estado;
(iv) garantir o direito à vida (com participação da sociedade e ênfase na prevenção qualificada e transversalidade de execução) (CRUZ-SANTOS; PEREIRA-SANTOS, 2012).
Enfim, foram medidas que complementavam aquelas do Pronasci e que buscamos explicar, neste trabalho, o porquê de não terem sido atendidas, com destaque para a redução da vulnerabilidade social e para a falta de transversalidade nas ações.
Foi nesse contexto que se configurou a nova administração territorial da Segurança Pública da Bahia, com divisão das Áreas Integradas de Segurança Pública (AISP), estabelecida pelo Decreto Estadual nº 13.561/2012.
As AISPs foram divididas, por sua vez, em Companhias Independentes de Polícia Militar – CIPMs (coincidentes áreas de Delegacias de Polícia Civil – DPCs[1]). Assim, conjuntos de AISPs estabeleceram Regiões Integradas de Segurança Pública (RISPs), cada uma, com Delegacia de Polícia Civil Especializada (DPCE) investigativa como, por exemplo, no caso dos homicídios, o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa do Atlântico (DHPP/ Atlântico). No entanto, algo dificultava a investigação dentro desse sistema, que foi a presença de apenas uma unidade do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues (IML/NR), que atende hoje todo o município de Salvador e sua Região Metropolitana (RMS), inclusive para as mortes não violentas (MATOS-ANDRADE, 2016).
Essa estrutura, criada a partir do PLANESP, contemplou ainda o Sistema de Defesa Social (SDS) e o Programa Pacto pela Vida (PPV), instaurados pela Lei Estadual nº 12.357/2011, principais marcos do modelo de gestão adotado pela SSP/BA (MATOS-ANDRADE, 2016).
Para Cicerelli (2013), o PPV tomou por base o modelo utilizado no estado de Pernambuco, que teve como idealizador o sociólogo José Luiz Ratton. Para Silva (2013, apud CICERELLI, 2013, p. 78), o pacto pernambucano foi uma experiência de êxito, “porque impactou na curva crescente de homicídios no estado, ou seja, se não diminuiu, pelo menos evitou que os homicídios continuassem a crescer”. Contudo, a “implementação na Bahia ocorreu de forma equivocada, primeiramente, porque não foi antecedida, de fato, por um pacto com a sociedade civil, mas imposto por lei, além de carecer de uma pesquisa de vitimização [...] e de levantamento das atividades da polícia” (Op. cit., 2013, p. 78).
O principal objetivo do PPV seria o de integrar as secretarias de governo, projetos sociais, direitos humanos, Segurança Pública, administração penitenciária e políticas de ressocialização (ou seja, a transversalidade das ações)[2]. Entretanto, isso não foi suficiente para incentivar a cooperação no combate à violência letal urbana, tampouco para enfrentar a questão da diminuição da vulnerabilidade social (MATOS-ANDRADE, 2016).
Nesse sentido, a materialização da Política de Segurança Pública baiana foi a própria divisão das AISPs, onde passaram a ser realizados projetos como prevenção social, ações de “guerra às drogas”, “meritocracia” aos policiais por resultados positivos nos índices de violência e implantação de Bases Comunitárias de Segurança (BCS). Dessa forma, AISPs agregaram homicídios dolosos praticados por civis (HDPC) e mortes provocadas por policiais (MPP), e isso quis dizer que, se um bairro fosse adicionado ou removido de uma certa divisão de AISP, tal decisão dependeria da ação que se desejasse politicamente sobre esse território (CALAZANS, 2016), com concentração de “áreas problemáticas” fora das “áreas nobres”.
Essa foi mais uma demonstração de que a Política de Segurança Pública segue pontualmente nos espaços, sofrendo mudanças arbitrárias das autoridades, quando deveria ser integrada.
Dessa forma, também foi na implantação das BCSs, que seguiram critérios de governo e não estruturais. Segundo a Secretaria de Desenvolvimento Econômico (SDE/BA), essas bases são pontos de gerenciamento policial, com o objetivo de promover convivência “pacífica” em localidades “críticas”, melhorando a integração da polícia com a comunidade, reduzindo os índices de violência urbana através de ações sociais, como cursos e atividades culturais (ALBUQUERQUE, 2018).
Em 2011, o bairro Calabar ganhou a primeira BCS de Salvador e da Bahia. Na Orla Atlântica havia, até o fechamento desta pesquisa, 5 BCSs: Calabar, Santa Cruz, Chapada do Rio Vermelho, Nordeste de Amaralina e Bairro da Paz. De acordo com a capitão Maria Oliveira, chefe da Seção de Gerenciamento de Projetos do Departamento de Polícia Comunitária e Direitos Humanos da PM/BA, o resultado dessa intervenção foi positivo, com redução significativa dos homicídios dolosos (Op. cit., 2018) praticados por civis.
Já para Abreu (2013), não se pôde atribuir a redução do crime de homicídio doloso no Calabar à implantação da BCS, isso porque, antes mesmo da instalação da unidade, os índices de letalidade violenta já não eram significativos no bairro. Por outro lado, enquanto houve aumento no número de tentativas de homicídio nos outros bairros da AISP Rio Vermelho, isso não aconteceu no Calabar, o que poderia indicar um impacto positivo da BCS. Na visão favorável sobre a BCS, parte dos moradores e os próprios PMs defendiam atividades comunitárias exercidas na base.
Com relação à presença da BCS em bairro popular, vimos anteriormente que poderia haver ajustamento do narcotráfico frente à essa nova condição, com maior cuidado por parte dos operadores de drogas quanto à circulação armada e deslocamento territorial de festas. Embora o tráfico continuasse matando, o que mudava era onde se matava, pois passava-se a sequestrar e levar a vítima para outros bairros. Além disso, os policiais sabiam disso e sentiam uma forte frustação (CONCEIÇÃO, 2015).
Para os moradores, uma dúvida que pairava sobre a BCS era o risco de que isso culminasse em práticas de extorsão por parte de alguns policiais, como quando alguns comerciantes começaram a ter que pagar por serviços de segurança “privada” e, para aqueles que se negassem, recebiam a visita da polícia acompanhada de órgãos da prefeitura para a retirada de aparelhos de som e toldos desconformes com a legislação. Ademais, recrutar para as BCSs policiais recém-formados não garantia a “pureza policial” (Op. cit., 2015).
Lembremos que a BCS (assim como a sua antecessora carioca, a Unidade de Polícia Pacificadora – UPP), em bairros populares, corroborou com uma forma militar de se fazer cidade (GRAHAM, 2016), como um conjunto de ideias, técnicas, normas de segurança e doutrinas ligadas às intervenções militares norte-americanas (de contra-insurreição). “A política de segurança pública adotada na cidade soteropolitana compartilha dos pressupostos da militarização e da consequente eliminação dos ditos suspeitos” (LOPES, 2014, p. 123).
Também coadunou com uma expansão das fronteiras do mercado imobiliário, enquanto política urbana, na Orla Atlântica, tentando “livrar” áreas de facções (ou como resultado prático, "pacificar" o monopólio de uma facção) em bairros que fossem pretendidos por novos condomínios de alta e média renda.
No Mapa de preço da terra e BCSs na OA de Salvador (2021), zonas de alto valor da terra, formadas principalmente por condomínios residenciais, áreas comerciais e boa infraestrutura de equipamentos públicos (áreas em verde) cercaram “enclaves” de baixo valor da terra, que são bairros populares formados geralmente de maneira espontânea e com autoconstruções (áreas em laranja e vermelhas). Justamente nessas últimas foram instaladas as BCSs, exceto na Boca do Rio e em Itapuã onde, apesar dos índices de violência urbana serem os mais altos da OA, ainda não houve interesse em "pacificá-los" e onde o mercado imobiliário não encontra mais grandes possibilidades de expansão.
Outra iniciativa discutível da Política de Segurança Pública baiana foi a Premiação por Desempenho Policial (PDP) – Lei Estadual nº 12.371/2011 – que previu o pagamento eventual aos servidores em função do alcance de metas na redução de homicídios. No entanto, algumas AISPs passaram a disputar vítima a vítima para entrar na faixa de premiação, mostrando mais uma manipulação de dados do que redução efetiva nos índices (MATOS-ANDRADE, 2016).
Em contrapartida, um avanço no processo estatístico-criminal da SSP/BA foi a estruturação da Superintendência de Gestão Integrada da Ação Policial (SIAP), dentro da Diretoria de Avaliação Operacional (DAO), composta por uma equipe multidisciplinar de policiais civis e militares, estatísticos, geógrafos, sociólogos e analistas de sistemas, dedicados à coleta, monitoramento e análise de dados criminais, conferindo alguma visibilidade maior aos homicídios dolosos (mas não às MPP), principalmente pelo site da SSP/BA (Op. cit., 2016).
A nível municipal, a principal iniciativa para reduzir os índices de VL, feita pela Prefeitura Municipal de Salvador (PMS), foi o Plano Intersetorial Modular de Ação para a Promoção da Paz e da Qualidade de Vida na Cidade de Salvador (PIMA/PP/QV/CS), de 2000, elaborado no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA) e, entre as iniciativas da sociedade, o Fórum Comunitário de Combate à Violência (FCCV). No entanto, esbarrou também na dificuldade de diálogo transversal (CORDEIRO et al, 2007).
Como o nosso objetivo aqui é o de abordar os agentes da morte provocada por policiais (MPP) e suas relações, precisamos nos debruçar crucialmente sobre a cultura institucional das polícias. Com relação a isso, em texto para o site “Justificando”, Martel Del Colle (2019), ex-oficial da Polícia Militar do Paraná (PM/PR), afastado da corporação, segundo ele, por suas divergências ideológicas com o pensamento conservador da instituição, relatou:
"Bastam cinco minutos com um policial para ele contar sobre algum abuso de autoridade, sobre alguma execução que ele presenciou ou ouviu falar, sobre uma seção de tortura. E todos acreditam estar fazendo o bem. Eu não duvido deles, pois eu também já acreditei. Somos treinados com o mantra 'bandido bom é bandido morto', mas eu nunca vi um policial sair para executar um deputado bandido, um juiz que vende sentença, um senador que é chefe de tráfico. E eu não espero que saiam. O que eu quero demonstrar é que você, policial, está sendo enganado. Você está numa guerra ideológica para matar pobre. Não é 'bandido bom é bandido morto', mas sim, 'pobre bom é pobre morto'. Você está sendo manipulado" (DEL-COLLE, 2019, on-line).
Ficou claro nesse depoimento que “a formação dos policiais-militares ainda tem forte característica de guerra” (DE SOUZA, 2014, p. 29) e que há uma falência organizacional-ideológica, onde a força se torna o argumento (SANTOS, 2007). Assim sendo, essa cultura institucional se apresenta mais poderosa do que a própria instituição PM, seguindo o que o Estado consolida como uma forma hierarquizada de pensamento e seus agenciamentos (DELEUZE; GUATTARI, 2010), incluindo, sobretudo, o racismo e criminalização da pobreza, “práticas desenvolvidas que pouco se alteraram no país” (ZALUAR, 1999, p. 8). Isso foi reconhecido até mesmo por oficiais da PM/PR na ativa:
"Contudo, são as mazelas de uma perniciosa subcultura policial que deve ser combatida dia a dia; este é o primeiro passo para reduzir as mortes decorrentes de intervenção policial. Desde o ingresso e na formação PM, deve-se priorizar o ensino que promova os Direitos Humanos[3], pois é objetivo da Instituição (mudar a cultura institucional) e não mera disciplina do curso" (CRUZ et al, 2020).
Para Lopes (2014, p. 128) “os indivíduos selecionados para participarem do quadro ativo da PM são ordeiramente agrupados e isolados em Centros de Recrutamento, onde são iniciados em rituais institucionais, despindo suas disposições adquiridas e incorporando o ethos militar”. Contudo, Thomas Sankara (1949-1987)[4], ex-chefe de Estado de Burkina Faso, país que se tornou independente da França no centro da África, reconheceu que “um militar sem formação política acaba sendo um criminoso em potencial” (KUMAH-ABIWU; OCHWA-ECHEL, 2013, on-line), tamanha a potencialidade que há nas mãos dos agentes armados do Estado e o seu poder de direcionamento da força, dependendo muito também de sua formação cultural-educacional.
Vimos que uma política de repressão aos vulneráveis e uma cultura institucional e policial bélica corroboraram para uma equívoca “guerra às drogas”. Portanto, isso acaba por anular o policiamento regular em determinadas áreas da cidade, limitando a presença policial a operações (de guerra) que se sobrepõem, até mesmo, às BCSs (para aqueles bairros que têm bases) (GRILLO, 2019). Para Conceição (2015), outra diferença do policiamento no bairro popular era com relação à falta de cuidado no preenchimento dos BOs que chegavam à SSP/BA, havendo ocorrências de homicídio onde a morte era descrita no bairro errado, além de outras mortes simplesmente indescritas.
Quando a presença da polícia se reverte em morte, o agente policial “da ponta” (prerrogativa de quem decide quando, como e contra quem agir) costuma não se submeter à lei, “embaralhando o legal e o ilegal”, o “legítimo e o ilegítimo”. Ademais, esse movimento depende, além de avaliações técnicas, de julgamentos do policial, inclusive de seus preconceitos associados à estigmatização da “pobreza”, tornando-os objeto de “guerra” e de “força desmedida” (TELLES, 2019), onde espaços de “ilegalismos” não são imperfeições das leis, mas uma “aceitação” do funcionamento social (LEITTE, 2012).
Embora passíveis de julgamento pela Justiça comum, mediante processo investigativo que se inicia tanto no quartel quanto na delegacia de Polícia Civil, os policiais-militares causadores de morte ainda são submetidos à Justiça Militar. Conquanto no Brasil, nos últimos anos, fossem criadas Ouvidorias de Polícia, essas não têm poder de investigação. Portanto, quando um policial comete crime, é aberto um Inquérito Policial Militar (IPM), presidido por outro PM, e o julgamento se dá nos “conselhos de sentença”, compostos por quatro juízes militares e outro togado, sendo que, para ser juiz militar, basta ter posto superior ao do policial julgado (DE SOUZA, 2014). Essa é, sem dúvida, uma facilidade para a impunidade.
Nesse sentido, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI, 2005) foi instaurada na Câmara Federal dos Deputados, com o intuito de investigar o extermínio de jovens na Região Nordeste, tanto por policiais quanto por grupos civis ou compostos de ambos. Com relação a Salvador, o relatório apontou vários crimes atribuídos a “grupos de extermínio” (que chamamos “grupos desconhecidos”, por não terem atribuição definida nesta pesquisa), baseados em documentos enviados à CPI, contendo processos judiciais, inquéritos policiais, laudos cadavéricos, matérias jornalísticas etc. O tráfico de drogas e o roubo de cargas, em geral, foram apontados como os pontos de origem para a atuação do extermínio, com posterior formação de grupos para praticar execuções ligadas a esses outros crimes.
Entre 2000 e 2003, segundo dados da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa da Bahia (CDH/ALBA, 2005), houve ações de “grupos de extermínio” no estado baiano, comandados por policiais-militares e civis, além de agentes de segurança privada. Eles estariam executando jovens “da ponta” do tráfico e/ou que praticavam pequenos furtos, em geral, homens, jovens entre 15 e 30 anos, de menor renda e negros, que viviam em bairros populares Região Metropolitana de Salvador e na própria capital, inclusive na Orla Atlântica, como Bairro da Paz, Itapuã, Patamares, Engenho Velho da Federação, Vale das Pedrinhas e Amaralina. Ainda de acordo com a CDH/ALBA (2005), era comum que as vítimas fossem tiradas de casa, executadas e levadas para pontos diversos, geralmente regiões de mata.
Como conclusão das CPIs de 2005, com relação à Bahia, acusou-se a incapacidade do estado de prover Segurança Pública, o que levaria à contratação de iniciativas privadas e a admissão ilegal de policiais de folga, por parte de moradores, dando sequência a extermínios, em alguns casos. No entanto, em nosso trabalho, não pudemos definir (com dados da SSP/BA e da imprensa) a quem atribuir as atuações de extermínio levantadas nesta pesquisa, o que somente um estudo específico como o da CPI poderia fazer.
Independentemente de retribuição financeira aos grupos que praticaram homicídios, a CPI (2005) conclui que havia desejo tácito de executar sumariamente, certos, esses agentes, de estarem “protegendo a sociedade”, enquanto a mesma aceitava essa situação. Por outro lado, constatava-se a existência de “policiais bandidos” que descarregavam seu ódio em indivíduos com passagem policial, por vezes forjando acusações de crimes. A CPI de 2005 concluiu que a SSP/BA tinha conhecimento da existência de grupos de extermínio compostos por policiais civis e militares, além de pessoas “contratadas” para matar, bem como sabia haver extermínios praticados por quadrilhas, particularmente aquelas do narcotráfico, que adotavam as mesmas técnicas dos policiais acusados.
Os estudos sobre os “grupos de extermínio” no Brasil, segundo Zaluar (1999, p. 9), concentraram-se nos militares (ou milicianos), que “reconstituíram a passagem do sistema de repressão do regime militar (1964-1985) para a privatização da segurança militarizada”, embora em nossa pesquisa não tenha sido possível identificar se havia autores militares. Ainda assim, esses grupos servem aos interesses das milícias, que são organizações criminosas maiores, formadas por ex-policiais ou da ativa, além de civis contratados para exercer o controle territorial no bairro popular, inclusive aliando-se ao narcotráfico para compor uma rede de exploração.
Na Bahia, houve casos em que milicianos invadiram conjuntos habitacionais “Minha Casa Minha Vida” e expulsaram moradores que não pagaram por uma taxa exigida, ou ainda cobravam por serviços de gás, TV a cabo, internet, van e mototáxi, na “periferia” de Salvador, ameaçando de morte quem não cumprisse as “novas regras” (CARPANEZ; BERTOLOTTO, 2019). Em nosso trabalho, não encontramos evidências desses casos na Orla Atlântica, o que não descarta a hipótese de havê-los.
Importante salientar que, em 2015, a Câmara Federal voltou a constituir nova CPI, agora sobre o “homicídio de jovens negros e pobres”. O documento relatou, sobre as mortes provocadas pela polícia (MPP) na Bahia, a ausência de mecanismos efetivos de controle (externos e isentos) da atividade policial, o que tornou a população – principalmente homens jovens negros e de menor renda – “verdadeiros reféns de um sistema seletivo e truculento” (CPI, 2015, p. 24). Ainda de acordo com a CPI de 2015, um dos aspectos “mais cruéis” de todo esse panorama foi que muitos dos policiais, igualmente, eram homens negros e oriundos de famílias de menor renda.
Sobre a atuação desses policiais negros em MPP contra pessoas negras, Velame (2020) afirmou que o “racismo à brasileira” conseguiu fazer com que um homem negro matasse outros por falta de consciência identitária causada pelo colorismo[5]. Por exemplo, onde as identidades negras não são bem definidas, como em instituições conservadoras do pensamento eurocêntrico. Velame (2020) questionou como o homem negro no Brasil poderia se rebelar a esse sistema se ele nem se via como um negro, porque a história da colonização carregou-o com o estigma da “pobreza”, da escravidão, da ignorância, do africano e do sub-humano, e o que ele deseja é atingir uma civilidade se aproximando do modelo eurocêntrico da branquitude e se afastando ao máximo da sua negritude. Portanto, para Velame (2020), seria simplista demais a “síndrome do capitão do mato”, porque isso tira o foco do real racismo brasileiro onde, na verdade, há um “desejo desesperador do colonizado em ser o colonizador”, citando Franz Fanon (1961).
Como consequência, para o FBSP (2021), a polícia brasileira foi uma das que mais matou e, consequentemente, uma das que mais morreu, em 2020. No índice estadual de MPP, por 100 mil habitantes, a Bahia ficou em 4º lugar (7,6), atrás apenas de Amapá (13,0), Goiás (8,9) e Sergipe (8,5). Já a média de policiais civis e militares assassinados, a cada grupo de mil agentes, em todo o Brasil, foi de 0,4, enquanto na Bahia foi de 0,3 (por 100 mil hab.). No entanto, quase 70% dos policiais que foram vítimas no país estava fora do horário de serviço, indicando que reagiram isoladamente a um crime ou que estavam realizando segurança privativa (não permitida por lei, mas como complemento de renda de menores salários dos soldados, cabos e sargentos). Portanto, quase tantos policiais morreram em suicídio, em 2020, do que em horário de trabalho, segundo a pesquisa. Com relação ao suicídio de policiais da ativa (militares e civis), a média nacional chegou a 0,1% a cada grupo de mil policiais (enquanto na Bahia, a média foi de 0,2%, o dobro), com dados do FBSP (2021).
Aqui uma breve retrospectiva das leis nacionais e estaduais de Segurança Pública e Direitos Humanos, de acordo com Vilma Reis (2005) e contribuição nossa (2021), mostrando que houve uma série de avanços nesse sentido, embora haja ainda muito a se fazer, pois a legislação é uma das maiores potências de mudança:
Constituição Cidadã, em 1988;
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990;
Lei de Delação Premiada, em 1990, como resposta ao “crime organizado” que envolvia agentes do Estado e grupos tolerados pelas agências de segurança;
Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH), em 1996, como resposta à violação dos Direitos Humanos, e fruto de um longo debate nacional;
Lei 9.445/1997, Lei de Tortura, quando o governo brasileiro se viu pressionado pelas denúncias de práticas de tortura, principalmente a presos sob custódia;
Programa de Proteção a Testemunhas e Vítimas de Crimes (PPTVC), em 1999, principalmente para pessoas que presenciaram os crimes de chacina com a participação de agentes públicos;
Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP), em 2000, tendo como primeiro compromisso o combate ao narcotráfico e ao “crime organizado”;
Primeira Conferência Estadual de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Bahia, em 23 de maio de 2005, quando o governador assumiu pela primeira vez a existência dos “grupos de extermínio” contra homens jovens negros;
Pronasci (2007) e Política Nacional de Segurança Pública (2011);
Plano Estadual de Segurança Pública (PLANESP) e Pacto pela Vida (2011).
Para Reis (2005), o trato da Segurança Pública no estado da Bahia se fez sedimentar. Seja pela falta de alternância do poder local (como o carlismo, de 1954 a 2007)[6], ou por ouvidorias sem representação civil, enfraquecimento de mecanismos de controle externo das ações das polícias, cultura da impunidade e falta de controle dos métodos ilegais. Além disso, pesquisas de balística junto ao IML/NR mostraram a participação do Estado através da presença de policiais em “grupos de extermínio” (Op. cit., 2005).
Em 1996, a Segurança Pública da Bahia ainda dava grandes demonstrações de brutalidade, como na “Operação Beiru”, que pretendia reprimir grupos criminosos no bairro soteropolitano homônimo (estigmatizado como a “Baixada Fluminense de Salvador”, em referência às violentas ações do tráfico de drogas). Essa incursão provocou a morte de vinte pessoas, todas negras[7], masculinas e com idade entre 15 e 35 anos. Foi somente depois disso que a PM/BA começou a fazer as primeiras reuniões envolvendo a comunidade e, mesmo assim, em 1998, o próprio delegado da DHPP declarou que mais de 70% dos homicídios no estado ainda tinha a participação de policiais (REIS, 2005).
Na contemporaneidade (2018-2020), segundo Nery (apud MELO, 2019, on-line), “é notório que exista (ainda) uma diferença de abordagem dos policiais em áreas centrais e periféricas”. Além disso, “é um racismo que faz parte da sociedade e que todo o treinamento realizado pelas forças de segurança não é capaz de quebrar” (Op. cit., 2019). Ademais, o Estado continua fazendo da Lei Penal suas Políticas Públicas de Segurança, sobretudo, em cenário de pauperização, pandemia e extrema-direita no poder nacional, o que afasta uma possibilidades de mudança imediata, ainda que cresçam os movimentos progressistas e antirracistas no país.
NOTAS
[1] Essa integração se justificava pela necessidade de se obter maior efetividade das ações operacionais em uma mesma área de responsabilidade territorial, garantindo a unidade de propósitos e o apoio mútuo entre as instituições de defesa social (MATOS-ANDRADE, 2016).
[2] Uma das iniciativas do PPV foi o Programa Corra pro Abraço, iniciativa da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SJDHDS) da Bahia, coordenada pela Superintendência de Políticas sobre Drogas e Acolhimento a Grupos Vulneráveis, que teve como objetivo promover cidadania e garantir direitos de usuários de drogas em contextos de vulnerabilidade social, baseado nas estratégias de redução de danos físicos e sociais. Disponível em: <http://www.justicasocial.ba.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=60#:~:text=O%20
Programa%20Corra%20pro%20Abra%C3%A7o,direitos%20de%20usu%C3%A1rios%20de%20drogas>. Em: 4 abr. 2021.
[3] “A proteção dos Direitos Humanos é um pressuposto fundamental da democracia” (DE ABREU, 2010, p. 111).
[4] De acordo com o pensamento pan-africanista (ideologia que propunha a união dos povos da África como forma de potencializar sua voz no contexto internacional), observou-se uma linha de políticos intelectuais, como Julius Nyerere, Kwame Nkrumah, Thomas Sankara e Amílcar Cabral (KUMAH-ABIWU; OCHWA-ECHEL, 2013).
[5] Colorismo é a discriminação pela cor da pele, entre pessoas geralmente membros de mesma etnia, porém tratadas de forma diferente, com base em implicações sociais ligadas à tonalidade da cor da pele (ex.: “mais branca” ou “mais preta”). In: JONES, Trina (2001). Shades of Brown: The Law of Skin Color, ISSN 1556-5068 (em inglês). Doi:10.2139/SSRN.233850. Acesso em: 4 abr. 2021.
[6] Movimento político (1954-2007) que vinha de vários mandatos de Antonio Carlos Magalhães (ACM), primeiro como deputado e depois como governador, sendo dois desses nomeados por governos militares durante a ditadura, e um outro pós-redemocratização, marcado por tecnocracia administrativa, clientelismo, controle dos veículos de comunicação, conservadorismo político e modernização econômica (SOUZA, 2004).
[7] Um fato que talvez possa explicar, em parte, esse racismo na Segurança Pública da Bahia, apontado por Reis (2005, p. 107) foi que o Estado, historicamente, serviu como abrigo de teorias racistas sobre uma suposta “delinquência negro-africana’, afirmando a patologia do criminoso nato.” Lembremos que o próprio IML/NR, para onde têm sido levados e registrados todos os corpos das vítimas de homicídios e outras causas letais, em toda Região Metropolitana, homenageia um dos seguidores da referida ideologia, Raimundo Nina Rodrigues, que também deu nome à Escola de Medicina Legal da Bahia (EML/BA), ainda no século XIX (REIS, 2005).